CRÍTICA – PIRATAS DO CARIBE: NAVEGANDO EM ÁGUAS MISTERIOSAS

CRÍTICA – PIRATAS DO CARIBE: NAVEGANDO EM ÁGUAS MISTERIOSAS

Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas
Foi-se o amor pelo Mar, por Leonardo Monteiro

A pré-produção do suposto reboot da franquia Piratas do Caribe está em andamento, e confirmadamente sem a presença de Johnny Depp. Ressurgir essa franquia que, em meados dos anos 2000, premeditava uma fonte inesgotável de criatividade para Hollywood, certamente será um desafio muito maior nos dias de hoje: o cinema de estúdio não é mais o mesmo. Mas quando foi que as coisas começaram a dar errado na franquia Piratas do Caribe? Eu te respondo: em 2011, com “Navegando em Águas Misteriosas”.

O capitão Jack Sparrow, além de uma figura malandra e marginal, não deixa de ser um anti-herói. Para além da coragem e até implausibilidade da Disney Pictures em financiar um projeto outrora ácido e irreverente (hoje algo não visualizável), está a carga sentimental (não diretamente consentida) que cerca toda a fantasia do universo. Diferente da maioria das obras que apelam para humor físico, visual requintado e ação, existem em Piratas do Caribe prenúncios de afeto dentro desse complexo criado pela dupla de roteiristas Ted Elliott e Terry Rossio, baseado na atração do famigerado parque na Flórida. Jack Sparrow ama o mar. Ele ama o Pérola Negra. Ele ama levar a vida daquele modo.

O diretor Gore Verbinski, compreendendo e demonstrando carinho por essa dinâmica, esbanjou tesão e fez uma épica trilogia marcante para o cinema, da qual os vejo como obras-primas. Um cinema de espetáculo que, deslumbrante visualmente, compôs um núcleo riquíssimo e nostálgico com o material em mãos (de base simples, diga-se de passagem). São plots básicos, mas que acreditam na sua não necessidade de levar-se a sério, enquanto o vai-e-vem enrola mas encanta. Não à toa, e doa a quem doer, é um filme da Walt Disney que observa seu infame protagonista pirata esbanjando furtos (da menor à maior escala possível).

Nisso, juntam-se, além do ingrediente mágico da fantasia, personagens marcantes, prazerosos de se acompanhar e que deixaram vínculos fortes. De antagonista à uma presença experiente e ilustre, ‘Capitão’ Hector Barbossa, e o fiel assistente, ‘Mestre’ Biggs – todos tratados, dentro da já inescrupulosa sujeira carregada nos insalubres ambientes e trajes, com autoridade e até um conservadorismo, no momento em que se respeitam seus cargos e suas benevolências. Sem falar, claro, do Davy Jones, que é uma figura complexa por ser ao mesmo tempo caricato, temperamental, sombrio, desapaixonado e triste – afinal, ao ouvir sua musiquinha de ninar (Hans Zimmer no auge), derrama lágrimas e se recorda com deleite e amarguras seu passado.

Dado o sucesso estrondoso da trilogia original – ainda mais quando lembrado que o segundo longa não teve lançamento na China, devido à temática de humor negro canibal (reforçando a coragem da iniciativa da Disney), claro que sequências viriam. Rob Marshall, do teatro musical, é escolhido para comandar Navegando em Águas Perigosas. O mesmo não apenas possui afinidade alguma com o material, como sugere não ter afinidade alguma com a própria linguagem do cinema. O diretor não soube conter consistência sequer na pseudo estruturada proposta. Piratas requeria uma espontaneidade épica e cômica, o que passou longe de ser atingido por Marshall e sua equipe (os Montadores também mudaram, e percebe-se total congestionamento e desmantelos com o material filmado na pós produção: chegando ao auge de os planos finais alternarem quatro vezes em um enorme plano aberto do mar e close-ups. Não há o que se pensar a não ser consentir que Marshall não sabe nem como terminar um filme).

Desconfigurando os núcleos e eliminando relevantes personagens ao visar, equivocadamente, priorizar Jack (que se encaixava melhor no meio de uma multidão de personagens do que como protagonista), o que se obtém é um desacato. Ver Johnny Depp sendo obrigado a assumir o piloto automático enquanto antes era uma alma vital (inclusive surpreendentemente sendo indicado ao Oscar) é desmoralizante. Ele é obrigado a se repetir constantemente, extrapolando em diversos momentos e rompendo um elo essencial criado pela genuinidade a qual seu icônico e eterno personagem emergia.

O surgir do longa, em sua essência, também é anêmico. O retorno ao universo é capenga; proveniente de um gatilho óbvio referenciado na conclusão do No Fim do Mundo (a água da vida), zerando assim qualquer parceria entre um roteiro honesto e original com um desenrolar fluido e orgânico. Aliás, como o exemplar mais curto da série até então, notório é o fato de soar como o mais longo. Se tratam de cenas lentas e repetitivas, diálogos dilacerados e monótonos, tudo agregando na lentidão indecente do longa de Marshall.

Tentando animar uma trama e uma direção sem importância ou coerência consigo mesmas, o apelo é, dolorosamente, para a repudiável repetitiva trilha sonora. Danificada pela reutilização insultante, tenta-se reprisar cenas de ação colocando a mesma trilha sonora das sequências originais. Exemplificando: em Piratas 2, o icônico tema musical “He’s a Pirate” toca enquanto Will Turner, Cutler Backet e Jack disputam com espadas pela chave do baú da morte numa roda gigante que rola por uma colina no meio de uma ilha, enquanto são perseguidos por marujos amaldiçoados do Holandês Voador. A cena é inventiva, impressionante, bem dirigida, bem coreografada, bem fotografada, divertida e possui movimentos de câmera estupendos. Em Navegando em Águas, a mesma trilha é utilizada em uma fuga capenga e ordinária de Jack – com uma direção tenebrosa, desnorteada, feia e esquecível. Chega a ser irritante o desdém do uso da música, sem falar que essa reaplicação enfadonha afeta diretamente no positivo imaginário existente.

Não apenas as cenas de ação são mortas, tediosas e cafonas, como a própria estética decaiu muito. Principalmente quando realçado o avanço significativo do primeiro para o segundo longa, este quarto exemplar da série é um tremendo retrocesso. O CGI pela primeira vez não casa com a fotografia, os planos pela primeira vez não esbanjam significado ou beleza, a fotografia é artificial, e todo o conjunto fecha uma obra esculhambada e desagradável. O único bom momento poderia ser a cena de Richard Griffiths (tio Dursley) interpretando um gordo Rei Charles. Meramente cômico e espontâneo, se destacando de todo o restante.

Formulaico, desgastado e até retrógrado, é uma surpresa imensa pensar que se trata da mesma dupla de roteiristas dos longas originais (ou então, Rob Marshall é ainda pior do que se pode imaginar, fraturando profundamente um roteiro ‘OK’). Notória incoerência também reside no fato de que os elementos fantasiosos da saga aqui são forçados e abruptos. Antes, o que se via era uma espontaneidade e um surpreendente e satisfatório encaixe entre as lendas da vida real e a feitiçaria. Aliás, o folclore proveniente dessa mistura é um dos pilares fundamentais. Todavia, em Águas Misteriosas, tudo é mal encaixado, insistente e sem alma. As sereias, criaturas da vez, são tão dissecadas antes de aparecerem que quando surgem tornam-se tremendamente sem graça. O principal motivo disso, provavelmente, foi o marketing (necessidade de chamar atenção com as presenças místicas, mesmo que sejam por pura exposição narrativa).

A ausência de sustança também reside na falta de imponência do antagonista, o Barba Negra. Bem interpretado por Ian McShane, que se diverte no papel, Barba Negra até possui um visual interessante. (Na bem da verdade, um dos únicos pontos que o longa capta a essência é no design de produção, que segue com aquele exagero que engloba bem a produção, em especial no navio Vingança da Rainha Ana). Essa instabilidade diz muito sobre o desajuste e o quão desconexo foi o filme. Tudo é remexido e afetado: os olhares irônicos de Barbossa passam a ser em vão e enjoativos, a lealdade de Biggs é abusada e perde valor, e qualquer, repito, qualquer profundidade é perdida; qualquer amorosidade foi desperdiçada – esqueça a caixinha de ninar do Davy Jones e suas esquecidas saudades pelo passado com a Calypso, ou Bootstrap Bill conformando-se com a eterna reclusão amaldiçoada no Holandês Voador e sua esperança que seu filho Will o salve.

Piratas do Caribe perdeu não só a lógica de filme espetáculo, mas perdeu o afeto.


Filme: Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides (Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas)
Elenco: Johnny Depp, Penélope Cruz, Geoffrey Rush, Ian McShane, Kevin McNally, Richard Griffiths, Keith Richards, Judi Dench
Direção: Rob Marshall
Roteiro: Ted Elliot, Terry Rossio
Produção: Estados Unidos
Ano: 2011
Gênero: Ação, Aventura, Fantasia
Sinopse: Capitão Jack Sparrow, em sua nova aventura, parte em busca da fonte da Água da Vida, mas terá que ser mais rápido do que o malevolente capitão Barba Negra.
Classificação: 12 anos
Distribuidor: Walt Disney Pictures
Streaming: Disney +
Nota: 3,0

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