CRÍTICA – PISCINA INFINITA

CRÍTICA – PISCINA INFINITA

Influenciado pela frustração emocional promovida por Longlegs (2024) – que inclusive tem crítica produzida aqui no site também do Bruno Barros, recomendo ler! – fui em busca de alguma novidade pelos lançamentos recentes dos últimos três anos para encontrar algo agradável ao meu paladar que sempre está sedento com novidades cinematográficas bizarras, desconcertantes e desconfortáveis. Assim, me deparei com as produções de Brandon Cronenberg, filho do famoso diretor de body horror David Cronenberg. Há uns bons anos atrás produzi um texto sobre a identidade do diretor David Cronenberg (um dos meus favoritos no coração e prometo trazer críticas sobre os longas dele aqui) ainda nos dias que o Club do Filme existia somente pelo Instagram. Surgiu a dúvida: qual seria a identidade criativa de Brandon Cronenberg? Haveria rastros de toda bizarrice, loucura, experimentação e ousadia criativa das histórias entregues pelo seu pai? As respostas serão encontradas ao longo do texto para essas questões que foram demasiadamente muito bem satisfeitas. Piscina Infinita

De primeira surpresa (e uma surpresa positiva) foram os visuais belíssimos e, simultaneamente desconfortáveis que o longa-metragem nos entrega em sua cena de abertura. Acompanhamos na história um casal James Foster (Alexander Skarsgård) e Em Foster (Cleopatra Coleman) de férias em um resort paradisíaco no país ficcional de La Tolqa. Nas primeiras sequências que visualizamos várias partes do resort a câmera busca um ângulo (que vai transicionando lentamente – o que já gera um apelo desconfortável) de ponta-cabeça de todos os cenários que em seu princípio deveriam ser belos. Nesse resort conhecem o casal Gabi Bauer (Mia Goth) e Alban Bauer (Jalil Lespert) que propõe uma aventura para além do ambiente paradisíaco e controlado que estão. Ao longo dessa aventura para dentro do território de La Tolqa através dos diálogos e exposições visuais, esse país ficcional está à margem de qualquer noção de respeito pelos direitos humanos. Novamente nos deparamos com os contrastes: visuais belíssimos e desigualdade social vigorante.

Ao longo de toda essa exposição inicial, La Tolqa é exposta ao público com referências ao que pode ser denominado como distopia. Há uma classe social estrangeira que desfruta do que existe de melhor, em um ambiente controlado, segregado do espaço dos comuns, onde permeia-se a desigualdade, violência e opressão. Existe uma riqueza dos pequenos detalhes que constroem a identidade visual desse país ficcional, que é exposta desde sua base com uma caligrafia específica até máscaras tradicionais da cultura local. Os nativos utilizam duas pintas de tinta preta na parte inferior do olho esquerdo, facilitando ao próprio público identificar que é originário do país e quem é estrangeiro.

Tolqa emana uma sensação de uma arquitetura brutalista soviética decadente, em que as ferrugens, aço, encanamentos, fiações, paredes lisas, ruínas urbanas gritam em uma imersão narrativa de deixar qualquer um boquiaberto pelo interesse de descobrir maiores detalhes dessa realidade. Mas, surge a questão, por que surge esse arco narrativo que explora os meios urbanos de La Tolqa?

Quando Jesse, Em, Gabi e Alban saem em sua aventura param em uma área próxima ao mar para se divertirem. As personagens possuem uma honestidade que de cara nos deixa incomodados (no caso Jesse e Em) expondo verdades sobre sua relação, afinal, Jesse é um escritor que não teve muito sucesso em sua carreira, mas graças à sua relação com Em que é filha de um dono de editora extremamente bem sucedido, conseguiu essa abertura de publicação e simultaneamente é sustentado pela esposa. Em dialogando com Alban deixa muito claro que sua relação com Jesse tem uma questão quase Freudiana, declarando sem problema que está com Jesse por rebeldia ao que seria considerado uma relação inadequada por seu pai (se relacionar com escritores falidos). É interessante que para nós público gera desconforto, mas as personagens não reagem com nenhuma reação equivalente em suas interações, mostrando uma normalidade que é quase alienígena para os comuns (no caso o próprio público que não é no mínimo milionário). Vale ressaltar um ponto crucial: desde a primeira interação entre Jesse e Gabi se prevalece uma tensão sexual, uma sedução – principalmente de Gabi sobre Jesse. Essa tensão atinge seu momento – que é até mesmo cru a retratação da cena – quando Jesse sai para urinar durante essa aventura burlesca e Gabi se aproxima dele pelas costas e o masturba. Não há nada romântico. Não há nada que fetichize a cena.

Mas, a partir de toda essa elaboração, em que momento se manifesta o Terror e Ficção Científica do filme?

Após essa aventura, o grupo de casais retorna ao carro e Jesse por estar teoricamente mais sóbrio do que os outros se responsabiliza por voltar dirigindo para o resort. Ao longo do caminho os faróis do carro começam a falhar e numa questão de míseros segundos Jesse atropela um transeunte fatalmente. A representação da cena é brutal, havendo um enfoque cru e simultaneamente brutal da vítima. E aqui as pistas que ditam a realidade do restante do longa-metragem inteiro nos são entregues pelas falas do casal Gabi e Alban já familiarizados com o país:

 

“Sem polícia. Voltem para o carro.

Não vamos chamar a polícia.

Você sabe alguma coisa sobre a prisão em La Tolqa?

Este não é um país civilizado. É brutal e é imundo.

Não vamos ser pegos por isso.

O que você acha que vai acontecer com você?

Você será estuprada pela polícia esta noite e amanhã eles encontrarão seu corpo.

É assim que funciona com esses animais.

Eu não vou fazer isso”.

 

Gabi e Alban dizem para o casal não se preocupar que eles lidam com o problema do carro alugado e os derivados do problema, permitindo-os muito superficialmente descansarem – afinal, quem descansa depois de testemunhar tamanha brutalidade?

A partir deste ponto a insanidade predomina no filme e seu discurso contempla todo o restante da narrativa. Jesse é pego pela polícia/exército local e levado para uma repartição pública que relembra através de sua arquitetura qualquer ambientação cinematográfica de centros de tortura. Decadência, corrosão, ferrugens, musgos e líquens, ruínas em meio à espaços limpos e vazios com nada que os decore por dentro. Jesse se encontra nesse ambiente separado da própria esposa em total surto de desespero por não saber de seu destino e da esposa – ainda mais somando o que foi falado pelo casal Gabi e Alban.

Segundo o detetive (Thomas Kretschmann) em La Tolqa quando há um homicídio (mesmo que não seja doloso) o filho(a) mais velho da vítima deve executar o responsável pelo homicídio. A resolução apresentada para quem é estrangeiro (que é tratado como benefício) é pagar uma quantidade absurda de dinheiro para que seja feito um clone e esse clone é quem será executado no lugar da pessoa.

Jesse paga a quantidade exorbitante (afinal, é sustentado pela esposa). O processo para ser clonado entra em outra ala que sou suspeito para falar (sou entusiasta de cenas que usam e abusam de elementos psicodélicos) com um jogo de imagens surreal e incrivelmente bizarras, trabalhando com uma confusão sensorial que não somente a protagonista passa, mas o próprio público. Esse elemento visual psicodélico com vários jogos de luzes, imagens sobrepostas e cortes rápidos com diversas tomadas criativas é utilizado em vários momentos ao longo de toda a narrativa. A sensorialidade transmitida trabalha com luxuosidade, sexualidade, experimentalismo e perca das percepções normais. A atuação mais contida de Alexander Skarsgård desde o início exala a loucura dos seus momentos fora da normalidade mais contida. É perceptível a insanidade que vai de pouco em pouco tomando sua fisionomia, alterando seu comportamento e bestializando aquele que antes vivia frio e quase passivo nas situações iniciais. Jesse quando vê seu clone sendo executado por uma criança de no máximo doze anos brutalmente não fica impactado, mesmo com toda a surrealidade proposta de ver a si mesmo sendo morto. Diferente de Em, ele simplesmente sorri. Uma nova emoção. Um novo sentimento. É a porta de abertura para toda insanidade que permeará pelo restante do longa-metragem.

Jesse, então, fissurado nessa nova emoção e despertar não retorna para sua residência com a esposa. Se reúne com o grupo de Gabi e Alban e outros que já passaram pelo processo de clonagem por terem cometido algum tipo de atrocidade em La Tolqa. O grupo é inteiramente composto por milionários: Jennifer (Amanda Brugel); Bex (Caroline Boulton); Bob Modan (John Ralston) e Charles (Jeff Ricketts). A partir daqui há uma escalonada nos atos decadentes das personagens que anseiam cada vez mais por promover atrocidades e repassarem pela situação de clonagem. Assassinatos, roubos, surubas, uso de alucinógenos. É a representação da máxima de vida de milionários entediados que viajam para um lugar paradisíaco distante que aproveitam das fragilidades econômicas e a própria corrupção amoral do sistema de La Tolqa para viverem o que quiserem distantes de toda normalidade de suas vidas em seus respectivos países. Soltam suas bestas interiores, violências, psicopatias e brutalidades.

Jesse se torna protagonista do grupo, em que simultaneamente o vemos enquanto participante e vítima das ideias insanas promovidas pelo grupo. A atuação de Mia Goth ao longo também brilha, soltando cada vez mais sua aura sedutora e conquistadora para uma violenta, brutal e insana mulher que deseja somente as mais insanas ideias perturbadoras. Sua atuação acaba sendo o destaque da vez por abraçar completamente o espectro da pessoa louca, controladora e recheada de ideias para dizer no mínimo grotescas. Essa é a essência da narrativa: as não limitações morais que os milionários possuem por conta de seu poder expressado pelo capital. Podem fazer o que bem entender. Jesse por ser um “pé-rapado” nesse ambiente se torna cada vez mais uma expressão dessa imoralidade deste grupo a ponto dele próprio se tornar vítima da insanidade toda que testemunhamos ao longo do filme. A própria personagem percebe que testemunha loucuras que estão muito além simplesmente da curtição amoral, da luxúria e da sedução. Vive enquanto experimento dessa classe elitista que promove massacres em nome do prazer e da quebra de sua rotina muito provavelmente tediosa e banal.

E essa é a base de seu discurso. A banalidade da imoralidade e a não punição daqueles que detém o controle do capital. Aqueles que residem nos tronos da burguesia são dotados de uma superioridade imposta pelas estruturas do capitalismo sobre os comuns. Experimentos. Brinquedos. Escapismos de sua tediosa realidade que pode realizar tudo que anseiam e desejam. É a terra do desejo e da violência. Os mundanos são números, são entretenimento. Testemunhamos isso todos os dias da nossa existência até os confins do dia que trarão a resolução final para essa crise tardia da realidade: apocalipse nuclear ou aquecimento global, quem sabe os dois simultaneamente?

É somente ligar a televisão que identificamos os paralelos do discurso do longa-metragem com a realidade empírica: quantos atropelamentos sem punição? Quantos moradores de rua queimados? Quantas carteiradas registradas? E se anseia, se grita, até mesmo se mata para buscar um assento dentro dessa aristocracia contemporânea que detém o poder sobre a câmara dos comuns. É investir, é apostar, é obter o cargo público, é fazer a “rachadinha” para tentar igual Jesse ser participante dessa imundice da elite que está muito além de qualquer senso moral que mantém a sociedade trabalhando suas doze horas rotineiramente em nome de obter alimentos e sobrevivência. Damos ouvidos aos “coach’s”, empresários, oligarcas, industrialistas e monopólios que falam tanto do “nós”, mas nunca há um honesto questionamento: quem é esse “nós”? E assim, precarizando saúde e educação, formam-se figuras que seguem dogmaticamente cada palavra dessa elite, transformando os comuns em seus cachorrinhos que latem seus discursos e divulgam suas histórias. O desespero é quando encaramos os nossos próprios clones, nossas próprias identidades alternativas e somos imbuídos da operação de destruir esse espelho, destruir o próprio reflexo em nome dessa possível aceitação. Não seremos aceitos. Nunca realmente se considerou Jesse alguém que não fosse visto somente como entretenimento fácil.

No fim… Após toda bizarrice e atos grotescos, se sobe no ônibus ao final da temporada. Retornam-se os tediosos e comuns jantares. As fofocas. As preocupações de qual roupa usar e a necessidade de trocar o carro por um modelo atualizado. Não foi nada além do comum. Nada… Pelo menos para eles. E nós? E Jesse? O resultado de testemunhar uma verdade que ficara ali, embaixo do tapete, escondida no inconsciente. Resta bater o ponto. Deixe o mundo queimar. Eu preciso do meu salário…

Brandon Cronenberg não somente herdou muitas das características de seu pai, mas agrega nesse primeiro contato pitadas criativas originais que acabaram me motivando testemunhar suas duas outras obras, consequentemente, vocês leitores poderão acompanhar aqui essa jornada!


Filme: Infinity Pool (Piscina Infinita)
Elenco: Mia Goth, Alexander Skarsgård, Cleopatra Coleman, Amanda Brugel, Caroline Boulton, Thomas Kretschmann, Jalil Jespert, John Ralston, Jeff Ricketts
Direção: Brandon Cronenberg
Roteiro: Brandon Cronenberg
Produção: Canadá
Ano: 2023
Gênero: Terror, Ficção Científica
Sinopse: O romancista James Foster fica com sua esposa em um resort no país costeiro de La Tolqa, onde atropela um homem local. Em La Tolqa, a punição pelo crime é ser morto pelo filho da vítima.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: Elevation Pictures e Neon
Streaming: Telecine
Nota: 9,0

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