CRÍTICA – PROCURANDO NEMO

CRÍTICA – PROCURANDO NEMO

Procurando Nemo: a melhor animação da história da Pixar!

Na nossa live recente sobre Bacurau (2019), mencionei como a dublagem acarreta distorções semióticas significativas por meio de alterações no contexto cultural e nas falas dos personagens. Essas mudanças podem modificar o processo de construção de sentido da obra, reconfigurando aspectos temáticos, narrativos e estéticos de maneira profunda. Embora essa distorção seja uma regra, há uma exceção emblemática: as animações! Comumente endereçadas ao público infantil, esse tipo de filme encontra no apelo universal a sua força mais expressiva, permitindo que as adaptações ao redor do mundo preservem tanto o seu conteúdo quanto o seu potencial dramático.

Procurando Nemo (2003) conta a história de Marlin, um peixe palhaço adulto que perdeu a esposa e quase todos os seus filhos – à exceção de um, Nemo – após o ataque de uma barracuda. O filme inicia-se a partir desse prólogo, um evento traumático do passado que terá consequências sobre toda a construção desse personagem no presente. Ainda que o ataque não seja “encenado” frontalmente, mas sim por vias oblíquas, sentimos o seu impacto instantaneamente. Logo na primeira cena, temos dois dos elementos que, somados ao seu apelo universal, ajudaram a consagrar a fórmula da Pixar: a potência da sugestão e o impacto emocional hipnótico.

Como herança emocional do acontecimento que inaugura a trama, Marlin se torna um pai superprotetor. O medo da perda e o sentimento de culpa se traduzem em um controle excessivo da sua parte. Esses elementos se manifestam em cenas como aquela em que Marlin decide “acompanhar” Nemo em seu primeiro dia de aula e na discussão que tem com o seu filho momentos antes do sequestro por um mergulhador.  A nadadeira de Nemo torna-se símbolo da sua fragilidade aos olhos de seu pai, que teme perdê-lo mais do que ao próprio oceano – para um peixe, soa até irônico, ou uma palhaçada, ter medo do oceano.

Elementos da Jornada do Herói!

Procurando Nemo é, ao mesmo tempo, uma narrativa sobre os traumas do passado e uma grande jornada do herói – talvez a mais bem construída e articulada de toda a filmografia da Pixar. Marlin é o herói, encarregado de trazer Nemo de volta para casa, sendo obrigado a superar os seus maiores medos e enfrentar todos os perigos que habitam o oceano. E cada etapa da Jornada do Herói pode ser lida à luz do itinerário místico proposto por Joseph Campbell em “O Herói de Mil Faces”.

  1. O Mundo Comum: A vida pacata que Marlin e Nemo levavam em sua anêmona, marcada pelo trauma e controle excessivo de Marlin.
  2. Chamado à aventura ou incidente incitante: um mergulhador sequestra Nemo, obrigando Marlin ir contra o oceano desconhecido.
  3. Recusa do chamado: Marlin hesita em deixar a anêmona, tomado pelo medo do oceano.
  4. Encontro com o Mentor: Dory é sua companheira de jornada, responsável pela mais valiosa lição: conseguir confiar novamente.
  5. Travessia do Primeiro Limiar: Marlin vai em direção ao Oceano em busca de Nemo, deixando para trás o medo e a insegurança.
  6. Testes, aliados e inimigos: Ao longo do percurso, há diversas provações, como os tubarões famintos, as águas vivas letais e correntes traiçoeiras. Entretanto, há aliados inesperados, como as tartarugas e o pelicano Nigel.
  7. Aproximação da caverna oculta: Marlin e Dory vão até o fundo do oceano, onde a escuridão reina e o desconhecido absoluto habita. Uma jornada simbólica rumo ao inconsciente.
  8. A provação: Marlin e Dory são engolidos pela baleia e escapam de uma morte aparentemente certa – assim como Jonas, na bíblia. Marlin precisa confiar em Dory e se soltar da baleia.
  9. Recompensa: Marlin e Dory conseguem descobrir o paradeiro de Nemo, restaurando a esperança e fortalecendo o vínculo entre os personagens.
  10. Caminho de volta: Marlin já não é o mesmo, foi transformado pela jornada, assim como Nemo. Eles retornam com o aprendizado que os desafios lhes trouxeram.
  11. Ressurreição: Merlin aprendeu a superar o medo e aprendeu a confiar no seu filho. Ele prova que mudou e permite que o filho aja por conta própria.
  12. Retorno com o elixir: a jornada restaura a relação entre pai e filho, que se encontrava abalada. O amor é livre do medo e Marlin permite que Nemo cresça.

Procurando Nemo desenvolve habilmente cada etapa da Jornada do Herói por meio de uma estrutura que constrói signos potentes e sugestivos: o oceano como ameaça e libertação, a nadadeira de Nemo como símbolo da sua fragilidade – e impacto emocional hipnótico –, a cena em que Marlin precisa se soltar para que a baleia o engula e aquela em que os peixes se unem para se livrar do barco pesqueiro.  Esses elementos ilustram o alinhamento entre a obra e a metodologia proposta por Joseph Cambell, além de expandir suas possibilidades expressivas dentro do cinema de animação.

Pixar: a consolidação de uma assinatura

Ao trabalhar com arquétipos universais, combinados com uma sensibilidade minuciosa – que se tornou uma marca da Pixar –, Procurando Nemo alcança uma sofisticação simbólica que nem mesmo os principais clássicos da Disney haviam alcançado com tanta profundidade e coesão narrativa. Essa construção harmoniosa funciona como catalisadora de uma experiência verdadeiramente universal. É aí que o filme revela a potência do mito: ser espinha dorsal de uma narrativa que transcende gerações, culturas e idiomas, sem que se perca o conteúdo dramático ou apelo humano. O impacto emocional hipnótico se configura como assinatura da companhia e uma das mais eficazes manifestações do universalismo do cinema de animação – e da sétima arte de maneira geral.

Dessa forma, Procurando Nemo supera o estigma das “narrativas infantis”, revelando a potência semiótica do cinema de animação quando este se compromete com a construção de sentido – e não somente com o entretenimento. Ao confirmar a força do mito como estrutura narrativa, reconfigurando-o com sensibilidade e inteligência emocional, constrói um produto único que dificilmente encontrará similar no mainstream contemporâneo, cada vez mais orientado pela diluição simbólica em prol da aceleração do consumo.

Filme: Finding Nemo (Procurando Nemo)
Elenco: Willem Dafoe, Andrew Stanton, Albert Broos, Alexander Gould
Direção: Andrew Stanton
Roteiro: Andrew Stanton
Produção: Estados Unidos
Ano: 2003
Gênero: Animação, Infantil, Aventura
Sinopse: Marlin, um peixe-palhaço que vive na Grande Barreira de Corais, perde sua esposa e ninhada, devoradas por uma barracuda. Resta-lhe um único filhote, ao qual ele chama de Nemo e passa a superproteger.
Classificação: Livre
Distribuidor: Walt Disney
Streaming: Disney Plus
Nota: 10

 

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