Quem Está Aí (2022) é o mais recente lançamento original Looke, uma antologia russa de cinco histórias em que personagens estão presos em determinado cenário e lidam com uma ameaça que está do outro lado de uma porta. De antemão, aviso que todas as histórias são pautadas em reviravoltas significativas, e a presente crítica irá tratar desses plot twists. Por isso, recomendo que leia o texto após assistir ao filme.
Pois bem, o filme tem a proposta de apresentar todos os episódios em plano sequência, mas essa é uma decisão arriscada, pois depende de uma boa capacidade técnica e criativa, o que, infelizmente, não é o caso aqui. Em primeiro lugar, é evidente que são falsos planos sequências, já que a decupagem móvel faz uso de artifícios óbvios demais para esconder os cortes. Isso acaba tornando a experiência trôpega, distrai o tempo todo, o que vai diretamente contra a intenção de imersão. Em segundo lugar, o fato de as tramas serem filmadas de maneira contínua implica em uma movimentação maior da câmera, e, assim, o desleixo nos enquadramentos de alguns episódios é acentuado. Aproveito para frisar que, dentre os cinco episódios, há aqueles mais bem trabalhados, mas todos eles têm esses problemas citados, mesmo que em proporções distintas, com alguns se destacando por características individuais.
A primeira história é sobre um casal que está bebendo vinho na adega subterrânea da mansão em que vivem, até que bandidos invadem a casa aos gritos e à procura do bilionário e seu dinheiro. A maior questão aqui é que a resolução não faz o menor sentido. Eventualmente, após fingir estar desesperada, a mulher do bilionário acerta a cabeça do marido com um hidrante e permite que os bandidos entrem na adega, revelando que tudo foi um complô organizado por ela para roubar os vinhos. Ora, se a mulher só queria atingir o marido e roubar seus vinhos, por que raios fazer isso da maneira mais estapafúrdia e barulhenta possível? Não é preciso ser um gênio do crime para visualizar uma penca de outras abordagens para esse roubo, como, simplesmente, render, ao lado dos bandidos armados, o marido à noite, no quarto, indefeso, e roubar os vinhos em vez de fazer todo esse teatro; mas, é claro, se a criminosa fosse razoável, este episódio não existiria.
A segunda é sobre um policial novato que, junto de dois superiores, vai até um casebre em um estacionamento por suspeita de haver imigrantes ilegais ali. Eles encontram os ilegais, porém os superiores, ao verem uma mulher jovem, a levam para os fundos do casebre e mandam o novato levar os outros ao carro. O jovem obedece, mas, depois de alocá-los na van policial, decide ir atrás dos colegas. Quando os encontra, eles estão despindo a mulher e o rapaz decide sacar a arma para impedir o estupro; entretanto, os policiais são alvejados por outra pessoa, escondida nas sombras, e o novato vai atrás desse alguém. Essa premissa até é interessante, pois, além do mistério apresentado, faz comentários sobre violência policial. Contudo, tudo isso degringola, porque aquele casebre, na verdade, é uma escape room abandonada, e o rapaz começa a entrar em quartos estranhos, com animatrônicos assustadores enquanto uma voz grave modificada nos alto-falantes indica que há alguém comunicando-se com o policial. Claramente um exibicionismo simplório de gênero, o episódio não impacta e não faz sentido com a resolução, que revela que foi uma criança, filha da jovem prestes a ser estuprada, que havia atirado nos policiais. Seria essa voz modificada fruto da imaginação do policial? Seria mero defeito no sistema de som da escape room? Certamente não poderia ser a criança, que teria de estar atirando e com um microfone na mão. Ou seja, uma bagunça que só mostra, de novo, o fraco desenvolvimento das ideias deste filme.
A terceira, a mais curta, é sobre uma mulher que está cozinhando para seu filho, que brinca do lado de fora, quando o pai da criança, claramente alterado e violento, bate à porta e exige ver o garoto. A situação-problema até é eficaz em causar tensão, pois a criança, a qualquer momento, irá voltar para casa, e essa é a última coisa que a mãe quer no momento. Dessa forma, cada segundo, em que ela tenta convencer o homem a ir embora, causa apreensão. Acontece que a resolução é aquele clichê baratíssimo de que, na verdade, tudo não passava de um delírio e a mulher tem problemas psicológicos. Quem ainda aguenta mais desse recurso narrativo?
A quarta se passa durante um voo de avião. O copiloto descobre que sua esposa o trai com o comandante e, quando fica sozinho na cabine de pilotagem, ele se tranca ali e avisa que irá se suicidar, com todos dentro da aeronave, a menos que os amantes façam sexo na frente dos passageiros. Certamente conta com alguma inspiração do episódio do avião em Relatos Selvagens (2014), que é uma antologia, afinal. De qualquer forma, esse cenário absurdo consegue divertir já que cada passageiro reage de maneira diferente, como uma idosa, que está decidida a fazer com que os amantes obedeçam a ordem cruel do copiloto, e uma psicóloga, que tenta encontrar pontos sensíveis para convencer o marido traído a não efetivar tal catástrofe. Mesmo que os personagens ajam de maneira bem exagerada, funciona na tentativa de criar um microcosmos do fascínio humano por degradação e humilhação – e vou reservar a resolução desse conflito ao leitor, pois acho que funciona como uma gag inesperada.
A quinta é a mais diferente de todas tendo como protagonista uma garotinha de aproximadamente 10 anos. Ela está brincando com sua mãe, feliz da vida, até que se ouvem batidas na porta e uma mulher tenta se comunicar com a menina para que abra a porta. A criança parece ignorar e a mãe a distrai para brincarem de outra coisa, como se aquela voz não existisse. Não demora muito para compreendermos que, na verdade, a voz do outro lado da porta é a da mãe verdadeira, e a mulher que está brincando com ela é fruto da imaginação da garota. Esse episódio, sequer mencionado na sinopse, tem uma energia genuinamente depressiva, porque a criança, claramente com alguma condição mental adversa e sozinha dentro de casa, está rodeada de perigos; parece-me que ela tem algum tipo de tendência suicida disfarçada pelo teor lúdico da mãe imaginária. A criança deixa o gás aceso no fogão, pensando que estava cozinhando; abre a janela do prédio e vê a mulher imaginária andando sobre rochas flutuantes, a um passo de se atirar de lá. Ademais, descobrimos que seu pai morreu e a mulher imaginária tenta criar avatares de pais para que ela escolha um, mas a garotinha recusa. De maneira similar ao terceiro conto, o problema real não está do outro lado da porta, mas do lado de dentro; e o fato da protagonista ser uma criança delirante, devido ao trauma da perda do pai, é um ponto interessante e realmente sombrio na antologia, ainda mais por isso tudo contrastar com a figura da mulher imaginária, como se fosse uma espécie de fada colorida.
Bom, considerando o fato de que, em todos os episódios, o artifício de plano sequência foi feito de maneira tosca, o que resulta em um filme com decupagem desleixada, e que o roteiro de três dessas cinco histórias é pouquíssimo inspirado, Quem Está Aí (2022) frustra muito na experiência geral. Até as duas últimas histórias, que têm algumas qualidades criativas, são ofuscadas pelo conjunto da obra. Porém, o último episódio, mesmo destoando do teor geral do filme, tanto é que não aparece na sinopse oficial nem na imagem em destaque na Looke, é uma pequena surpresa pela abordagem incomum da protagonista infantil. E a atriz mirim Sofya Petrova faz muito bem o seu papel mantendo a inocência da idade ao mesmo tempo que é capaz de imprimir expressões distantes e tristes para trazer a ideia de que há algo errado com ela. Aliás, é curioso que, em um filme divulgado como de tensão, susto e ação, o que mais me marcou foi a sutileza da interpretação de uma criança, na história menos agitada e mais inocente de todas – realmente uma bonita surpresa.
Filme: Kto tam? (Quem Está Aí?) Elenco: Vladimir Mashkov, Aleksandra Bortich, Kirill Karo, Tikhon Zhiznevsky, Sofya Petrova. Direção: Vitaly Dudka, Vadimir Maslov, Mikhail Morskov. Roteiro: Vitaly Dudka, Goga Poberezhnyy, Mikhail Sokolovsky, Mikhail Morskov. Produção: Rússia Ano: 2022 Gênero: Suspense Sinopse: Todos conhecem a sensação de ansiedade ao ouvir um estranho batendo em sua porta. Um bilionário, um piloto de avião, um policial em treinamento e uma mãe solteira são chamados a encarar o desconhecido para tentar entender porque eles têm tanto medo. Classificação: 14 anos Distribuidor: Zoom Production Streaming: Looke Nota: 3,0 |