Premissa boa
Depois de viver um trauma muito grande, Raquel muda com seu pai para Monte Megido, uma pequena cidade do interior, com a intenção de recomeçar a vida. Lá, ela rapidamente faz amizade com um grupo de meninas da mesma idade, todas fervorosamente religiosas. Durante um passeio trivial a uma cachoeira, Raquel, como se atendesse a um chamado, dirige-se para uma construção em ruínas no meio da floresta, que tem ao lado um buraco aparentemente profundo e misterioso. Depois desse evento, não demora muito para ela propor para o grupo de amigas fazer alterações na bíblia, considerada por ela um texto machista que culpa as mulheres por grande parte das desgraças do mundo.
É uma premissa interessante e bastante provocativa. Um ponto de partida para questionar um livro que para maioria das pessoas é sagrado, intocável, mas que, sem dúvida, sempre deu margem à inúmeras interpretações, algumas definitivamente controversas. Entendo que o filme, assim, quer comprar uma briga grande, gerando, quem sabe, uma discussão ampla sobre o tema — que é algo legítimo, bem-vindo num país que se afirma como uma democracia, apesar dos tropeços recentes. O assunto está posto. Mas será que a forma de narrá-lo dá conta do recado?
A execução deixa a desejar
Há em “Raquel 1:1” cenas bem construídas, com planos visualmente fortes, como aquela imagem da banheira em que vemos o sangue (menstrual?) da personagem misturar-se com a água — a imagem está no trailer do filme também, mas com duração menor; e há outras, entretanto, que, para mim, não funcionam tão bem, como a da festa, por exemplo, com uma mise-en-scène engessada e pouco expressiva, tanto do ponto de vista das atuações quanto da decupagem/montagem. Apesar da fluidez narrativa, essa irregularidade vai se manter ao longo do filme, alternando cenas boas com outras nem tanto.
As personagens evangélicas estão construídas de forma bastante simplória também. Estão todas chapadas, sem matiz. Uma visão estereotipada que é recorrente em muitos filmes brasileiros, pelo menos os que assisti. A classe média progressista — os cineastas em geral fazem parte dela — ainda não consegue se aproximar desse grupo de pessoas e abordá-lo com a densidade devida. É uma pena porque se perde a chance de descortinar um mundo de sutilezas e contradições que vai muito além da capa, do comportamento religioso histriônico.
Confesso que não entendi muito bem a presença do sobrenatural no longa-metragem. Saí da projeção com a impressão de que era dispensável, pois não existe um aprofundamento desse aspecto; e, para mim, o filme funcionaria bem sem ele. Por conta disso não sei exatamente em qual gênero enquadraria “Raquel 1:1”.
Não tenho dúvida de que a dimensão sobrenatural do filme renderia por si só uma boa história. Mas fica subjugada à outra, ao drama das mulheres que sofrem violência física e psicológica de homens que são uma vergonha, que sequer deveriam existir — aliás, não há em “Raquel 1:1” um único homem que presta; todos são execráveis e violentos. O único homem decente é o pai de Raquel, mas é um sujeito um tanto fraco.
Faltou tempo ou habilidade para equilibrar melhor as duas coisas: a violência contra a mulher, tema central do filme, que é real, cotidiano, infelizmente, e o fantástico, o fora do comum, o inexplicável, que está ali de maneira tímida, pouco desenvolvida.
Involuntariamente, “Raquel 1:1” coloca um dilema que é recorrente nos filmes nacionais — acredito, inclusive, que é um fenômeno latino-americano: o discurso do filme se sobrepõe à qualquer outra coisa. Ele devora todo o resto. Tenho a sensação de que o cineasta brasileiro não pode (ou não quer) apenas contar boas histórias — o que já seria um desafio e tanto. Daí nossa dificuldade com gêneros cinematográficos que não sejam os nossos dois velhos conhecidos: o drama e a comédia. Ele precisa contar história com uma mensagem forte sobre o país, sobre um tema atual, sempre com um viés crítico que ajude o brasileiro a entender melhor a sua própria realidade. Adoro o Cinema Novo. Refinei meu senso crítico e estético a partir dos filmes feitos por essa turma. Mas o movimento também deixou como legado essa necessidade de sermos sempre analistas da realidade. Mesmo havendo entretenimento, ele apenas serve para abrir nossos olhos. Nem o entretenimento pode ser só entretenimento. Os filmes feitos aqui precisam apontar caminhos, discutir temas urgentes, dizer quem somos, o que queremos e para onde vamos. Isso acontece no cinema, na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas, em todo lugar. O artista como porta voz do povo, como agente de transformação política e social. E agora como agente de transformação dos costumes. É uma responsabilidade muito grande, um peso enorme para ele. E precisa ser sempre assim?
Uma última observação. É previsível o desfecho da relação de amizade das duas personagens protagonistas. É mais do mesmo, outro clichê contemporâneo.
Filme: Raquel 1:1 |