Rio Doce é um filme atípico. Ele não faz questão de se fazer um grande acontecimento, mas é nos detalhes que se faz marcante. Inicialmente, acompanhamos Tiago em sua rotina no bairro do Rio Doce, em Olinda, trabalhando em uma loja de eletrônicos, com fortes dores nas costas e na tentativa de estreitar sua relação com sua filha. Em um certo momento, uma mulher, branca e de classe média alta, surge em sua vida dizendo que possivelmente seriam irmãos por parte de pai. É a partir daí que os questionamentos de Tiago se tornam mais intensos e o longa-metragem de estreia de Fellipe Fernandes torna-se potente. As minúcias dessas relações e, principalmente, a construção do protagonista são os pontos mais altos do filme.
Antes de mais nada, é interessante pensar a forma em que o cinema Pernambucano trabalha a localidade. Em filmes como os de Hilton Lacerda e, principalmente, de Kleber Mendonça Filho, como Bacurau, Aquarius e O Som Ao Redor, por exemplo, a ambientação e a localização das tramas são fatores importantíssimos para o desenvolvimento do enredo. É uma simbiose entre o lugar e suas vivências. O fato do cinema captar isso é maravilhoso! Constrói-se uma ideia de patrimônio cultural de um lugar em uma determinada época que é realmente incrível. E é claro que em Rio Doce, que eu acredito que bebe dessa fonte, não seria diferente. Aliás, não é à toa que o filme leva o nome de um bairro que, inclusive, já foi parte da vida do diretor. A ambientação da vizinhança do bairro do Rio Doce é muito bem construída, desde os barulhos dos vizinhos e dos cachorros latindo na rua, até o hip hop, a dança break e o reggae das noites de descontração. Dessa maneira, ao comparar essa realidade com a casa da “nova família” de Tiago, o filme aborda de forma bem acessível e preocupada, por meio de miudezas nos diálogos e gestos, questões políticas e socioeconômicas pertinentes. O espaço é essencial para essa elaboração.
O longa é marcado por assuntos muito importantes e que interferem diretamente na vida do protagonista. Trabalhar a descoberta de uma nova família ou a questão da ausência paterna como uma grande revelação ou como um possível clímax seria o óbvio a ser feito. Entretanto, surpreendentemente, isso não acontece. Essas adversidades são relevantes para a narrativa, mas não é o que move. Os conflitos internos de Tiago com essas descobertas, juntamente com a busca por uma relação melhor com sua filha e ex-esposa e as dores, físicas e emocionais, do seu passado, são os fatores que desenvolvem o enredo. Okado do Canal exerce um papel profundo de uma maneira única, exalando no olhar os sentimentos de Tiago, mesmo que o personagem seja uma pessoa não tão expressiva e com aparentes dificuldades de demonstrar sentimentos. Sua bagagem emocional é forte, ainda mais quando entramos no assunto do papel de masculinidade para um homem preto de periferia, e torna uma narrativa que poderia ser mais lenta em algo atrativo. Além de Okado, as interpretações da excelente Nash Laila e da irmã de gênio difícil interpretada por Amanda Gabriel, que também é uma das melhores preparadoras de elenco desse país, estão ótimas.
Rio Doce narra vivências comuns, que pessoas próximas a nós podem passar, ou até mesmo nós podemos experienciá-las. São perspectivas palpáveis. É nisso que se encontra sua maior potência. Legados de estruturas sociais que já existem há tempos, mas contadas através de um olhar interior e sensível, com diálogos simples e diretos. Uma forma maravilhosa de Fellipe Fernandes estrear no cinema. Amadurecimentos são necessários, mas o trabalho já é de boníssima qualidade. Com certeza terá uma vida longa nos circuitos de festivais, rendendo discussões sincera e pertinentes, além de reiterar os atributos do cinema pernambucano.
Filme: Rio Doce Elenco: Okado do Canal, Nash Laila, Amanda Gabriel, Thassia Cavalcanti, Carlos Francisco, Claudia Santos, Cíntia Lima, Mariah Teixeira Direção: Fellipe Fernandes Roteiro: Fellipe Fernandes Produção: Brasil Ano: 2021 Gênero: Drama Sinopse: Pressionado por uma dor nas costas e pela grana sempre curta, Tiago (Okado do Canal) tem um encontro que reconfigura o que sabe sobre o próprio pai, tornando iminente uma crise em seu modo de ser. Ambientado entre a periferia de Olinda e a classe média recifense, o filme contrasta os dois mundos sem ignorar ou achatar a complexidade das relações humanas. Nesse universo em que pulsam as batidas do rap e a vida em comunidade, o que entrevemos nas rachaduras de um modelo de família em ruínas é a construção de uma outra masculinidade. Classificação: 14 anos Distribuidor: Vitrine Filmes Streaming: Não disponível Nota: 8,3 |