COTIDIANA GERMINAÇÃO: O FAZER POLÍTICA DA MULHERIDADE NEGRA.
Assusto-me quando compreendo que o fazer política é tão cotidiano quanto o “boa” que eu solto ao caminhar pelas ruas do meu bairro. As mulheres negras da minha família sempre me ensinaram a fazer política, seja mantendo uma boa vizinhança, seja argumentando em prol de direitos ou fiscalizando meus deveres… Politicar é um fazer inerente da mulheridade negra! Cresci num lar com mulheres e envolvendo essas tantas vivências permeadas por ações políticas, mesmo sem saber muito bem como funcionava a política formal (esta nunca esteve perto da minha realidade) materializada por homens, em sua maioria brancos, com discursos maquiados e de fácil engano tomando decisões egóicas que afetam meu povo diretamente.
Em 14 de março de 2018, aqui em Salvador estava acontecendo o Fórum Social Mundial, mesmo ano que eu entrei na UFBA, lembro-me de festejar com amigos o tão esperado fim das férias… Nesse mesmo dia, em uma Avenida do Rio de Janeiro, Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados com 13 tiros no carro onde seguia para sua casa na Maré. Saia do evento “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, realizado na Casa das Pretas na Lapa, Marielle é mulher, negra, mãe, filha, irmã, lésbica e cria da favela da Maré. Mestra em Administração Pública, teve como dissertação o tema “UPP: a redução da favela a três letras”. Ao entender minimante seu projeto de política identifica-se questões territoriais, urbanas e todas envolvendo conflitos e disputas. Isto posto, reforço o tempo presente pois essa mestra negra para mim é presente!
Lutar por justiça, defender a memória e multiplicar o legado e regar as sementes, estes são os pilares de ação do Instituto Marielle Franco, criado em 2019, por sua família. O documentário Sementes começa a ser gravado um ano antes da fundação da organização, uma produção que se assemelha à última missão citada do pilar: potencializar e dar apoio às mulheres, pessoas negras e faveladas que querem ocupar a política, para que os espaços de tomada de decisão tenham mais a cara do povo.
A produção congrega as candidaturas de seis mulheres negras: Tainá de Paula, pelo PCdoB; Jaqueline Gomes , pelo PT; Mônica Francisco, Talíria Petrone, Renata Souza e Rose Cipriano, pelo PSOL, expondo uma certa diversidade com relação às pautas requeridas pelas mesmas, questões urbanísticas, de segurança pública e de movimentos sociais se encontram em uma exibição da reverberação impotente de um caso que segue sem apontar culpados. A quem serve esse tal direito à justiça apontado constitucionalmente? E a política? Quem tem o direito de traçar os rumos políticos desse país?
Desse modo, retorno as minhas memórias infanto-juvenis, em época de eleição as pessoas que comigo se pareciam lançavam candidaturas cômicas (e por isso, trágicas), eram membros da mesma religião que minha vó (neoprotetantismo) ou corriam pra fazer boca de urna e garantir um trocado… A candidaturas apresentadas no filme criam uma face antagônica às minhas memórias, apresentando desde candidaturas de uma pastora defendendo que a religião é para si mas a política é para o povo, passando por pautas relacionadas ao racismo ambiental estruturado a contar do momento em que fora decretado o pós abolição com uma urbanista, até candidaturas federais buscando justamente disputar a tão afastada política nacional com militantes e ativistas.
Por isso, aponto Marielle como um óvulo presente para me mostrar que é possível lutar pelos direitos do meu povo, e por ser possível, sua vida foi interrompida. Sinto que a abordagem da figura Marielle como agente multiplicadora se perde ao longo do enredo descritivo e eleitoral. Biologicamente, as sementes surgem a partir de um processo de fecundação, a interrupção de uma vida por meio de um atentado político é essa união de gametas (comprovando a complexidade de resistir em sociedade), esta poderia ter sido registrada para além de uma agenda eleitoral e partidária, a abordagem de registrar campanhas poderia ter seguido uma outra perspectiva do que se entende por política, a produção se coloca objetiva ao ponto de se tornar uma análise antropológica e participante, mas não acionária, sem grandes interferências ou outros conceitos e práticas políticas para além do espaço formal e brasiliense.
Entendendo que, as periferias, historicamente esquecidas pelo Estado, criaram um modo de politicar próprio seria interessante abordar este viés em um documentário que se intitula enquanto tudo que se lança à terra para germinar, ora se esse espaço subjugado e marginalizado (favela, periferia, subúrbio) tem uma dinâmica de regras e acordos próprios, por que não abordar o modo que a mulheridade negra faz política em suas comunidades mesmo com o esquecimento consciente do Estado? Esta questão não é diretamente para a produção em si, considero a dificuldade de abordar o contemporâneo no contemporâneo e a falta de recursos para o setor audiovisual que se encarece dia após dia, longe do anacronismo que insiste em me rodear vendo a produção com as rebarbas do 2023, sinto falta de ver mais mulheridade e menos campanha, mesmo com as deputas exercendo suas mulheridades mas para o motivo já citado, sinto falta de atitude estética.
Apesar disso, a produção me levou a estes espaços de reflexão e lembrança, me apresentou mulheres negras contemporâneas na política formal, lutando pelos direitos, de um povo que já chegou nesta terra sem direito algum, mostrando que Marielle se junta a tantas outras mulheres negras que lutam pelo direito de ser e estar na sociedade. Afinal, o fazer política em busca de seus direitos é uma característica inerente da mulheridade negra, visto seu lugar na base de uma inventada, porém bem estruturada, hierarquia social. Quem se assusta com mulheres negras em lugares de poder? O que nós buscamos concretizar que faz até o sistema temer?
Experienciar Sementes foi como um impulso para a mulher que eu vou ser e estou sendo, entender que corpos como o meu devem e vão acessar espaços políticos formais é fundamental para o meu crescimento como uma cidadã negra. Para além dos apelos partidários, a produção reforça a emergente tomada de poder pela mulheridade negra no Brasil, o básico precisa alcançar o povo negro, o povo periférico, o povo indígena, o povo trans, o povo ribeirinho, o povo campesino enfraquecido pelo agronegócio e todo e qualquer outro povo marginalizado de forma forçada por uma minoria estruturada por sangue e ego de raiz colonial. Pensar no legado de Marielle Franco, para mim, hoje, é pensar que sou semente em uma busca constante de ser-poder!
Salvador, 10 de junho de 2023.
Filme: Sementes: Mulheres Pretas no Poder Direção: Éthel Oliveira e Júlia Mariano Roteiro: Éthel Oliveira, Helena Dias, Júlia Mariano e Lumena Aleluia Produção: Brasil Ano: 2020 Gênero: Documentário Sinopse: Em resposta à execução de Marielle Franco, as eleições de 2018 se transformaram no maior levante político conduzido por mulheres negras que o Brasil já viu, com candidaturas em todos os estados. No Rio de Janeiro, Mônica Francisco, Rose Cipriano, Renata Souza, Jaqueline de Jesus, Tainá de Paula e Talíria Petrone se candidataram aos cargos de deputada estadual ou federal. O documentário acompanhou essas mulheres, em suas campanhas, mostrando que é possível uma nova forma de se fazer política no Brasil, transformando o luto em luta. Classificação: 14 anos Distribuidor: Embaúba Filmes Streaming: Filmicca Nota: 6,9 |