O novo longa-metragem de Lírio Ferreira, Serra das Almas, representa uma daquelas estranhas e inusitadas viagens no tempo em que, ocasionalmente, o espectador por vezes tem a oportunidade de embarcar. Neste caso em específico, o deslocamento se dá mediante uma afluência de imagens que, remetendo à produção cinematográfica pernambucana em fins do século XX e na primeira década deste século, trazem à tona um vívido museu performático de signos bastante caros ao período do Cinema da Retomada, devidamente enfeixados pelos códigos narrativos de flancos porosos que norteiam o cinema contemporâneo brasileiro.
Em 1996, no Festival de Brasília, era exibido pela primeira vez Baile Perfumado, dirigido pela dupla Lírio Ferreira e Paulo Caldas. O filme logo se tornou um marco não apenas da retomada do cinema em Pernambuco, mas, também, do fazer cinema em todo o Brasil dos anos noventa – lembremos que Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, de Carla Camurati, fora lançado apenas um ano antes. Nesse contexto de uma nova e pulsante fase do cinema nacional, a recepção bastante positiva obtida pelo longa-metragem foi fundamental para fazer de Lírio um dos principais nomes da então emergente cena pernambucana, ao lado de Cláudio Assis e Marcelo Gomes – representantes legítimos, por assim dizer, da “primeira geração” local da Retomada.
Em Serra das Almas, Lírio mantém a pegada autoral impressa por ele desde os seus primeiros trabalhos, buscando referências estéticas e narrativas na potência da práxis cinematográfica que lhe rendeu, outrora, um lugar ao sol como realizador. Estão lá, ainda que de maneira atenuada – porém não menos evidentes e reconhecíveis – as imagens e histórias que caracterizavam as obras produzidas nos anos 1990 e 2000, relacionadas a temáticas como a desigualdade social e a violência urbana, exploradas de forma mais crua, sem subterfúgios que esmaeçam as cálidas nuances do desolador painel de tragédias reais cotidianas.
Por meio de uma montagem que estabelece, dialeticamente, uma alternância espaço-temporal que põe como opostos complementares o presente e o passado, o rural do agreste pernambucano e o urbano do Recife, acompanhamos Gislano (Ravel Andrade), Gustavo (Vertin Moura) e Charles (David Santos), três jovens que, enredados numa trama na qual corrupção, miséria e o sonho de uma mudança de vida se misturam, acabam participando de um roubo de joias cujo insucesso tem como ápice o sequestro de duas jornalistas, Samanta (Julia Stockler) e Luiza (Pally Siqueira). Estas são levadas até a casa de Ricardo (Jorge Neto) e sua companheira Vera (Mari Oliveira), na dita Serra das Almas, onde o cativeiro é instalado. Contada de modo não linear, essa história traz personagens que carregam consigo o fardo de ações pretéritas que insistem em assombrá-los nos dias atuais, levando-os a tomar decisões turvadas por um turbilhão de sentimentos e emoções muitas vezes conflitantes entre si.
Se o filme, por um lado, de maneira eficiente, evoca aspectos narrativos próprios à gramática cinematográfica da Retomada, sobretudo quando a geografia de seus acontecimentos reflete a assimetria de renda, status e poder responsável pelos muros invisíveis que integram a paisagem social urbana, por outro lado, há de se ressaltar a atualização feita quanto ao modo de entrelaçamento dos códigos de sustentação da narrativa, os quais definitivamente negam uma unidimensionalidade ficcional. Ao abrir portas para o hibridismo de gêneros, Serra das Almas assume, com entusiasmo, a contemporaneidade dos caminhos diversos de seu roteiro. Ou, em outras palavras, coloca-se como obra que abraça a multiplicidade de formatos narrativos (thriller, ação, terror, drama, comédia, entre outros), que conferem uma particularidade louvável em termos de composição de mise-en-scène. Estranha, é verdade, mas efetiva e convincente. Nesse sentido, Lírio Ferreira acaba por aderir, parcialmente, ao arcabouço de ideias e iniciativas que constituem a cena do Novíssimo Cinema brasileiro, marcada pelo pluralismo de referências, não raro difusas e disformes, que, juntas, costumam dar ensejo a um caldo cinematográfico encorpado e revigorante, surpreendente para o espectador.
Mesmo com o diretor afirmando que a ausência de linearidade da montagem objetivava evidenciar a reverberação do passado nos rumos do presente, a sucessão de idas e vindas no tempo termina sendo um recurso que trava o andamento da trama, por vezes atenuando a dramaticidade dos eventos. Simultaneamente, tal escolha criativa não fornece elementos suficientes para uma construção psicológica mais pormenorizada das personagens, de modo que suas condutas fossem justificadas com maior consistência. Essa organização intercalada da história também é motivo de desorientação para quem a assiste, uma vez que os flashbacks nem sempre se mostram óbvios enquanto elemento de regresso a uma situação anteriormente ocorrida.
Serra das Almas comporta, portanto, duas facetas fílmicas que dialogam entre si de maneira estreita e complementar, uma apontando para um passado recente da sétima arte nacional, e a outra para um presente que se dispõe a desbravar suas próprias veredas. Nesse sentido, o filme situa-se entre o velho e o novo, a experiência certificada e o experimento que se põe à prova, exatamente na encruzilhada entre as possibilidades realizadas e as possibilidades potencialmente realizáveis. Como obra cinematográfica, possui suas limitações, oriundas, sobretudo, do anacronismo imagético que perfaz boa parte dela – por mais que nos esforcemos, é comum vir aquela ingrata percepção de “eu já vi esse filme antes”.
Ainda que não existam inovações (técnicas, estéticas e/ou narrativas) em jogo, é preciso reconhecer que, talvez, tenhamos aqui um daqueles casos de reconhecimento tardio, obra que o avançar dos anos contribui para que seja vista e percebida com um olhar mais generoso. Algum dia, quem sabe, o amálgama moldado por Lírio Ferreira poderá ser considerado uma espécie de “elo perdido” a demarcar o encontro de duas gerações de cineastas que recolocaram o cinema brasileiro nos trilhos ao longo dos últimos trinta anos.
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Filme: Serra das Almas Elenco: Ravel Andrade, Vertin Moura, Mari Oliveira, Julia Stockler, David Santos, Pally Siqueira, Jorge Neto Direção: Lírio Ferreira Roteiro: Audemir Leuzinger, Maria Clara Escobar, Paulo Fontenelle Produção: Brasil Ano: 2024 Gênero: Ação Sinopse: Em Pernambuco, um roubo de joias reúne um antigo grupo de amigos desajustados, fazendo com que os resultados sejam catastróficos. Vigiados por fantasmas do passado, cada um deles terá que encontrar sua própria forma de liberdade. Classificação: 16 anos Distribuidor: Imagem Filmes Streaming: Não Nota: 6,0 |