Um passado de representações
Tarzan of The Apes (1912) é um livro de Edgar Rice Burroughs. O seu protagonista volta a aparecer em pelo menos 25 livros e cerca de 50 filmes. No entanto, poucas adaptações para o cinema conquistaram alguma relevância. Entre elas, podemos destacar Tarzan of The Apes (1918), Tarzan the Ape Man (1932), Greystoke: The Legend of Tarzan (1984) e Tarzan (1999). Já The Legend of Tarzan (2016) fracassou em sua tentativa recente de trazer uma nova abordagem para o personagem.
Desde os livros, Tarzan é representado com uma superioridade física, moral e intelectual em relação aos nativos africanos (reflexo do pensamento imperialista). Entretanto, a origem dessa superioridade possuía uma ambiguidade. Tarzan era superior por conciliar os conhecimentos da civilização europeia com os aprendizados adquiridos através do convívio na selva. Mas infelizmente essa ambiguidade era suprimida, senão rejeitada, pelas adaptações cinematográficas, pois representava uma ameaça aos estereótipos colonialistas. Por isso, os primeiros filmes concentraram seus esforços em distorcer os elementos da obra de Burroughs a favor de uma agenda imperialista.
Os primeiros filmes
Tarzan of The Apes (1918) foi o primeiro filme e é impregnado pelo pensamento imperialista. O colonialismo africano à época adquiria um novo aspecto: o transcultural, dado pela difusão de imagens que moldavam os imaginários em relação ao continente. Nesse processo, as diversas identidades africanas foram subvalorizadas e marginalizadas, ridicularizadas através das imagens que eram exportadas para o mundo.
Tarzan The Ape Man (1932) e o antecessor Tarzan of The Apes (1918) representaram os nativos africanos como seres primitivos e a África como um local inóspito. Filmes posteriores retrataram Tarzan como um herói genérico. Embora trouxessem um personagem completamente despolitizado, nos filmes Tarzan and The Lost Safari (1957) e Tarzan and The Trappers (1958), os nativos continuavam sendo rotulados como “selvagens” e as representações sobre a África permaneciam completamente estereotipadas. Um exemplo é que o continente era chamado de “país” e sua diversidade biológica era propositalmente distorcida.
Essas obras eram desprovidas de qualquer qualidade cinematográfica e contribuíram para a construção do imaginário de uma África selvagem, sem história e nem cultura.
Uma nova roupagem
Greystoke: The Legend of Tarzan (1984) ignora um passado de representações e propõe um resgate fiel ao livro. A obra apresenta uma apuração dramática superior aos anteriores e resgata a ambiguidade em torno do Tarzan. Esteticamente, é dotado de um estilo que sugere uma qualidade literária, tomada por uma atmosfera detalhada e vivida. Hugh Hudson, diretor do filme, traz imagens que se assemelham às páginas de um livro. Apesar de resgatar um pouco do contexto colonial, isso não chegava nem perto de ocupar posição de destaque no filme.
Embora o personagem de Burroughs tivesse diversas leituras, uma clara lacuna foi se formando. A produção carecia de uma obra que pretendesse refletir sobre as próprias formas de representação e expusesse como as imagens cinematográficas construíram e perpetuaram estereótipos sobre o continente africano. É nesse contexto que a Walt Disney Pictures, produtora de obras infantis, lança o filme mais adulto sobre o personagem até então.
A Disney sempre adaptou histórias antigas, sejam literárias ou não. Nessas adaptações, era uma prática comum infantilizar os códigos que as compunham e suprimir parte do seu sentido original. Tarzan (1999), porém, é uma adaptação que utiliza do mesmo conjunto de significados das obras anteriores para encená-lo criticamente tornando-o, através de sua complexidade estética e temática, um filme adulto.
Tarzan (1999) – Introdução à sua estrutura
“Não há piranhas na África” / “There’s no piranha in Africa”
Em uma cena leve e humorística, há uma crítica sutil às ideias errôneas sobre a fauna local, perpetuadas anteriormente. Nesses filmes, as mais diferentes feras habitavam o continente africano. Piranhas e onças-pintadas, animais nativos da América do Sul, costumavam estar presentes como se fossem oriundos da África. A partir dessa cena, começamos a perceber que a estrutura de Tarzan estará repleta de elementos sutis que buscam criticar a representação caricatural da África.
A Jornada de Tarzan
O filme narra a jornada de autodescoberta de Tarzan, abarcando temas como identidade, pertencimento e busca por aceitação. Divido entre dois mundos, ele busca compreender o seu lugar. Kechark, o líder dos gorilas, representa o desafio interno de Tarzan para se encaixar e ser aceito pela selva. Esse será o eixo dramático principal da primeira parte do filme, onde o foco está na sua relação com os gorilas – que possui seu ápice na cena em que o herói derrota Sabor. O mundo dos humanos também não representa ausência de conflitos para o personagem. Clayton, o caçador introduzido na segunda parte, é uma ameaça não somente à identidade de Tarzan, mas também à harmonia entre os dois mundos.
Assim, Kechark e Clayton são os dois antagonistas, estabelecendo tanto o conflito interno quanto a ameaça externa – elementos que juntamente compõem a jornada do herói. Clayton, além de ameaça externa, é o único que se encaixa no arquétipo do vilão. A animação destaca essa dinâmica entre dimensões interna e externa por meio de uma linguagem expressiva, na qual se destaca o uso do extracampo sonoro. Ouvimos o som do tiro de uma espingarda antes de Clayton ser apresentado ao público – pontuando essa ameaça que vem “de fora”. Ao longo do filme essa situação se repete, mas o espectador já conhece Clayton e o associa ao som dos tiros. Assim, cria-se uma convenção de associação entre um som e um personagem, chamada leitmotiv.
Sempre que um novo tiro é ouvido, Tarzan grita: “Clayton”, como se também fosse capaz de fazer essa associação. Mas como um selvagem, Tarzan não é dotado de capacidade cognitiva para compreender a lógica de um leitmotiv, convenção própria dos seres humanos. Mas ele está convencido de que Clayton é o nome dado ao som dos tiros de uma espingarda e faz essa associação de uma forma mais instintiva – enquanto nossa compreensão como espectador é lógica e racional. Além de conferir um tom humorístico ao filme, o uso desse leitmotiv ajuda a encenar um importante código da obra de Tarzan: a sua dificuldade de compreender as convenções do mundo humano – e alguém deverá ensiná-lo.
“Quero entender sobre os estranhos como eu” / “I wanna know about the strangers like me”
Jane é uma legítima intelectual. Entretanto, sua paixão pelos livros é tratada de forma irônica nos filmes sobre Tarzan lançados até a década de 1960. Neles, sua inteligência é constantemente comparada a de um chimpanzé (literalmente). Em Tarzan (1999), Jane é responsável por educar o protagonista, ensinando-lhe sobre o mundo dos homens, enquanto Tarzan lhe ensina sobre os segredos e as leis da selva. Essa passagem é marcada por uma montagem paralela – acompanhada da brilhante canção Strangers Like Me, de Phil Collins –, que reforça a reciprocidade do processo de aprendizado.
Em outras palavras, é Jane quem civiliza Tarzan. Nesse processo, utiliza um cinetoscópio, aparelho capaz de reproduzir imagens. Lançando mão dos meios tecnológicos que tem à disposição, molda o comportamento do “selvagem” a partir de seus próprios padrões. Embora a cena seja totalmente leve e descontraída – efeito produzido pela canção e pelo romance entre os dois –, essa sutileza nos faz refletir sobre a lógica colonial. O cinetoscópio, como um dispositivo de imagens, simboliza o poder do cinema como ferramenta de imposição cultural – demasiadamente explorado nos filmes anteriores.
Civilizado, Tarzan consegue compreender o idioma e já pode conviver com os seus iguais na Inglaterra. Também consegue atender aos pedidos humanos. Apaixonado por Jane, e coagido por Clayton, Tarzan trai a sua família e os leva até os gorilas. Clayton, que desde o começo apresentava traços “vilanescos”, revela o seu plano de sequestrar e vender os animais. Tarzan é o único que pode derrotá-lo e libertar a sua família. Assim o faz, sem precisar matar Clayton. O caçador se enforca ao cortar os cipós acidentalmente durante a luta. Além de reforçar a ética de Tarzan – que sempre evita a violência extrema –, esse desfecho ressalta a ironia trágica em torno de Clayton, vítima da própria ganância e violência.
A referida cena sobre a morte do caçador, além de carregada de uma densidade simbólica, é visualmente impactante. Não vemos Clayton ser enforcado, a confirmação é feita através de uma imagem – sua sombra – que aparece em uma árvore quando um raio de repente ilumina a cena. Novamente, temos um uso expressivo do extracampo e um tom sombrio é adicionado à cena, incomum em filmes infantis. Após a morte de Clayton, que também coincide com a de Kechark, a jornada de autodescoberta de Tarzan se completa e ele escolhe permanecer na selva, com a sua própria família. Jane, completamente envolvida por Tarzan, opta por permanecer ao seu lado.
O legado de Tarzan (1999)
Embora não opte por seguir rigorosamente o texto de Burroughs, Tarzan é o filme que melhor encena e dramatiza os seus elementos. A morte dos pais, a presença dos gorilas, o romance com Jane, a descoberta da identidade e o contraste entre o civilizado e o selvagem estão todos presentes. A relação de Tarzan com os animais, o elemento de sobrevivência, sua lealdade e ética, além da ameaça dos leopardos e o antagonismo representado por Clayton e os caçadores, são incorporados de maneira coesa. Esses elementos compõem uma jornada simbolicamente rica, sem sobreposições e excessos, criando uma experiência fluida e impactante tanto visual quanto sonoramente – em que pese a exploração do extracampo, a qualidade da animação em si e o impacto das canções.
Isso torna Tarzan não apenas a adaptação cinematográfica mais complexa do personagem até o momento – sendo a que melhor explora as dinâmicas de sua própria estrutura –, mas também uma das animações mais notáveis da história da Disney. Além de uma densa jornada sobre autodescoberta e pertencimento, o filme possui uma abordagem visual e sonora complexa. Ao mesmo tempo, ao encenar criticamente os seus próprios elementos, Tarzan se destaca pelo olhar reflexivo sobre as convenções cinematográficas para questionar e subverter abordagens passadas.
Portanto, Tarzan é um filme plenamente consciente do peso que carrega entregando uma obra que supre as expectativas, disfarçada sob a aparência de um despretensioso filme infantil.
Filme: Tarzan Elenco: Tony Goldwyn, Minnie Driver, Glenn Close Direção: Chris Buck, Kevin Lima Roteiro: Bob Tzudiker, Tab Murphy, Noni White Produção: Estados Unidos Ano: 1999 Gênero: Animação, Aventura Sinopse: Um bebê perde os pais na selva. Órfão e sozinho, ele é encontrado por uma macaca que o cria como se fosse seu próprio filho. Tarzan cresce pensando ser um gorila, agindo e vivendo como tal. Quando uma equipe de pesquisadores chega à floresta, o rapaz percebe que é igual a eles. Classificação: Livre Distribuidor: Walt Disney Pictures Streaming: Disney + Nota: 9,0 |