É interessante notar, durante a temporada de premiações, quando um filme surpreendente não recebe a devida atenção em razão das categorias principais. No caso de Trilha Sonora para um Golpe de Estado (2024) é ainda mais curioso, porque, comparando a montagem desse filme, que não foi indicado ao Oscar de Melhor Montagem, com a dos títulos que foram, a diferença de virtuose é gritante.
O filme tem um ritmo frenético e incessante, uma pulsão agitada de sons e imagens, para dar conta do período efervescente da Guerra Fria, mas com uma sacada ímpar: narrar a época por meio da música que tomou conta desses anos, o jazz. Não por mera ambientação sonora daquele passado, mas superpondo a forma e a energia dessa música aos acontecimentos e aos ânimos do contexto geopolítico do momento. Para isso, resgata uma lista infindável de alguns dos maiores nomes do jazz norte-americano, como Louis Armstrong e Abbey Lincoln, e também cantores e grupos musicais africanos, como Miriam Makeba, da África do Sul, e Ok Jazz, do Congo; país que, por sinal, é o centro de todo o caos político retratado, sintetizado na figura de Patrice Lumumba, o líder anticolonialista, ex-primeiro ministro da República do Congo, que desafiou o mundo e foi assassinado por isso.
O filme, de duração de duas horas e meia, trata de mais temas do que é possível apreender e isso é proposital, pois instiga a pesquisa, o estudo. Para ter um compreendimento razoável do período retratado seria necessária uma especialização em História, e o filme demonstra ter esse conhecimento através de sua montagem. Em vários momentos são referenciados livros, entrevistas, fonogramas; em meio à filmagens de época, apresentações musicais; ao som de baterias e saxofones, gritos e tiros.
Para ilustrar a potência dessa experiência, imagine-se lendo, pela primeira vez, uma notícia de cunho político que te enfureceu a ponto de esbravejar pelos ares e decidir que algo devia ser feito a respeito; me parece que essa sensação, intensa e curta, é o que o diretor Johan Grimonprez, junto de seu montador Rik Chaubet, quis passar. Uma urgência, uma euforia, um levante. Lembra, aliás, um curta-metragem de Santiago Álvarez, incontornável para realizadores de documentários, ainda mais os que tratam de temas políticos, Now! (1965). É claro que Trilha Sonora para Um Golpe de Estado tem seus momentos de respiro, ainda que breves, enquanto Now! é um crescendo de intensidade do início ao fim, em seus cinco minutos de duração. Recomendo assisti-lo após o longa, até porque se trata do mesmo período.
Com relação ao período histórico em si, o filme trabalha principalmente com Patrice Lumumba, no Congo, e sua resistência contra o colonialismo; Eisenhower, nos Estados Unidos, e o exercício do soft power por meio do jazz e da espionagem com a CIA; Nikita Kruschev, no apoio à Lumumba e na tentativa de manter influência em territórios africanos; Dag Hammarskjöld, na secretaria-geral da ONU, e sua omissão nos conflitos da região do Congo; tudo isso aliado às turnês mundiais de Louis Armstrong, que passou a compreender, com o passar dos anos, a real razão de suas várias viagens ao redor do mundo – manutenção de poder e influência americana.
É um filme denso, mas não intimida, encoraja, pois concatena ação e efeito de maneira clara, no caso do destrinchamento do período histórico, e ainda o faz com uma montagem primordialmente rítmica, com alusões até à montagem eisensteiniana, como quando utiliza planos de animais para simbolizar algumas figuras históricas. Essa é uma vantagem do cinema político, contrariamente ao jornalismo, na maior parte dos casos, pois consegue escancarar, por meio de recursos estilísticos, um posicionamento, uma reflexão, ou melhor, uma incitação. Trilha Sonora para um Golpe de Estado apresenta, com muito vigor, as artimanhas imperialistas para um golpe de estado, e é esse vigor que, quem sabe, pode inspirar novos realizadores a olharem para seu passado, e seu presente, de maneira ativa e reivindicativa – e, quem sabe, formar indivíduos de senso crítico, que possam vir a impedir futuros golpes de estado.
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Filme: Soundtrack For a Coup d’État (Trilha Sonora para um Golpe de Estado) Elenco: Patrice Lumumba, Louis Armstrong, Nikita Kruschev, Dwight D. Eisenhower, Dag Hammarskjöld Direção: Johan Grimonprez Roteiro: Johan Grimonprez Produção: Bélgica, França, Países Baixos Ano: 2024 Gênero: Documentário Sinopse: Jazz e descolonização estão entrelaçados nesta montanha-russa histórica, que reescreve o episódio da Guerra Fria que levou os músicos Abbey Lincoln e Max Roach a invadirem o Conselho de Segurança da ONU em protesto contra o assassinato de Patrice Lumumba — político que liderou a independência da República Democrática do Congo. Prêmio Especial do Júri por Inovação Cinematográfica Sundance 2024. Classificação: 14 anos Distribuidor: Pandora Filmes Streaming: Indisponível Nota: 8,0 |