CRÍTICA – UM HOMEM DIFERENTE

CRÍTICA – UM HOMEM DIFERENTE

Em um dado momento da vida, pode ser comum o despertar do sentimento de não-pertencimento, de deslocamento ou falta de entrosamento social, por variáveis motivos, seja por uma questão comportamental, de personalidade, de convicções. Entretanto, isso é ainda mais frequente e gritante quando se trata de uma pessoa que possui alguma anormalidade estética diante dos olhos da sociedade, e é justamente sobre essas implicações que Um Homem Diferente, dirigido por Aaron Schimberg, busca discutir. Na trama, acompanhamos Edward (Sebastian Stan), um aspirante a ator que se submete a uma cirurgia radical para transformar sua aparência. Porém, o que parecia ser a realização de um sonho logo se torna um pesadelo, levando-o a uma jornada para recuperar o que perdeu como consequência de sua crucial escolha.

Um dos pontos centrais de debate do texto de Um Homem Diferente consiste em perscrutar a visão social sobre o que é esteticamente belo, de como isso afeta pessoas que estão fora desse padrão e pode tanto abrir portas como fechá-las – ainda mais partindo da rejeição do próprio Edward em relação à sua aparência pelo fato de possuir um rosto desfigurado por ser portador de neurofibromatose. Ele possui uma personalidade introvertida e reclusa, e sua aparência afeta ainda mais sua forma de se enxergar e enxergar o mundo afora. Ele até tenta socializar minimamente, mas não se sai bem. No momento em que Edward aceita fazer parte de um tratamento revolucionário que o cure e lhe dê uma nova face, ele resolve repaginar sua vida: muda de nome, torna-se um agente imobiliário de sucesso e até sua personalidade começa a se moldar à nova realidade. Mas será que, a partir daí, ele terá a vida dos sonhos? A que ponto mudar a aparência muda nossa essência?

Acompanhamos que nem tudo o que parece ser o maior dos problemas realmente é o maior problema, ele pode ser inclusive ínfimo mediante a tantas questões internas mal resolvidas. Fica até difícil evitar fazer um paralelo ao subtexto do recente e magnífico A Substância, visto que acompanhamos, em ambas as tramas, pessoas que almejam uma nova aparência bonita e jovial a fim de “conquistar o mundo” (ou no mínimo, um bom olhar de quem o cerca), e suas consequências. Porém, acompanhando esses personagens, nos damos conta de que uma “ganância estética” pode ter o custo de destruir a real personalidade de quem a busca. Ainda que, no caso de Um Homem Diferente, os elementos de body horror estejam enquadrados numa questão menos grotesca, eles estão presentes aqui para gerar incômodo e, consequentemente, uma reflexão que, infelizmente, fica mais na superfície do que poderia se ampliar.

Inclusive, o filme cai numa dicotomia e contradição de, ao mesmo tempo em que quer mostrar a história de alguém com um nível de deformação facial e furar essa bolha, também gerar um choque e desconforto por parte do espectador, deixando as escolhas do personagem quase que em segundo plano e sua condição em primeiro – tanto que o filme quase vai para o caminho de um suspense psicológico ao invés do drama (iria descambar para esse lado se não fosse a constante do humor ácido presente). Afinal, a real importância do texto do longa é somente sobre a aparência incomum de Edward, ou sobre as implicações do que viver por trás desta face de fato representa? O autor tropeça em não explorar a segunda opção nos primeiros 40 minutos de rodagem; foca pouco na psiquê de Edward e coloca sua aparência como único e principal fardo que precisa ser corrigido para que ele obtenha felicidade e sucesso profissional e pessoal, e como passará a ser sua vida do “conserto” em diante. Em outras palavras, é como se a trama possuísse menos interesse em Edward como pessoa em si, e mais pela “ideia dele”. Mais tarde a própria trama vem sugerir, depois da transformação do personagem, que Edward está obcecado com a ideia da sua antiga imagem, de tudo o que poderia alcançar se ainda estivesse por trás daquela pele – inveja do antigo eu?. É uma farofa psicológica.

O longa possui amplas discussões minimamente interessantes, como aceitação, rejeição, a que nível uma mudança externa implica numa mudança interna (ou vice-versa), até mesmo a questão se é válido artistas não-deficientes representarem pessoas com deficiência em obras teatrais ou cinematográficas – contudo, Schimberg deixa suas boas ideias no meio do caminho por “querer atirar para todo canto”. Talvez o maior problema aqui seja justamente esse: a instabilidade rítmica e a ausência de foco temático. O diretor não sabe muito bem qual redirecionamento irá focar na trama de seu personagem. É como se ele, num estalo de criatividade desenfreada, tivesse mil ideias para agregar ao roteiro, cujo foco estaria bem definido, contudo, não conseguiu uma forma de vincular tantos temas numa coesão narrativa bem desenvolvida, ora pelas inúmeras elipses e saltos temporais abruptos que absorvem o impacto e conjecturas de Edward, ora pelo excesso de confusão do personagem, que por sua vez gera um afastamento e falta de identificação por parte do espectador. Afinal, a princípio, ele querer uma mudança de sua aparência física na esperança de uma melhoria de vida, aceitação social e sucesso amoroso é válido: afinal, quem não quer tudo isso? Ainda mais levando em conta que até mesmo muitas pessoas enquadradas num padrão estético também buscam por melhorias em sua imagem, o que dirá alguém com alguma deformidade?

Então, a insegurança, autoestima baixa e fraqueza emocional se justificam e nosso apreço por ele surge daí; todavia, a partir do ponto em que Edward troca de “pele”, percebemos que o problema era muito além de sua aparência aos olhos das outras pessoas. Sua personalidade é fraca, oca, facilmente moldável de acordo com o que as pessoas querem dele, não do que ele realmente quer para si, e isso era de fato o único fator repugnante subjacente ao seu ser, não sua antiga aparência, como ele imaginava. Ele rejeita tudo o que o molda como ser humano para se enquadrar às expectativas alheias –principalmente após a transformação, o que é irônico! Uma pessoa, outrora frágil emocionalmente, infeliz, taciturna, logo dá espaço a um homem instável, ansioso, desesperado e quase narcisista. O desespero para ser enxergado e aceito, se antes existia, era velado, silencioso; o novo Edward grita, bate, escandaliza, tudo para ser ouvido, notado… aceito. Mas nunca vai ser, já que a (auto)rejeição começou por si mesmo. Não somente em caráter externo, porém, sobretudo, internamente, intimamente. Antes estava ruim e agora… piorou? Assim fica complicado.

Em suma, Um Homem Diferente é um filme que visivelmente está recheado de boas ideias e intenções, ele tenta mostrar a que veio, embora se perca no seu próprio emaranhado de provocações e alegorias. A princípio, tem um ritmo moroso e estagnado demais; em contrapartida, do meio pro fim, acelera seu ritmo e suas intenções com tanta intensidade a ponto de atropelar a construção geral e não ter total êxito em solidificar tudo o que havia estabelecido anteriormente, beirando o confuso, que quer dizer muito e nada diz, uma incógnita. Não é muito ousado e inovador – aliás, é um dos filmes da A24 com mais essência de A24 dos últimos tempos no sentido de querer puxar pelo incômodo e excentricidade. E, ainda que seja um tanto perdido nas suas “mil” ideias, pode permitir ao espectador com boa vontade tirar algum proveito levando algumas reflexões consigo ao ver os créditos finais subindo.


Filme: A Different Man (Um Homem Diferente)
Elenco: Sebastian Stan, Renate Reinsve, Adam Pearson
Direção: Aaron Schimberg
Roteiro: Aaron Schimberg
Produção: Estados Unidos
Ano: 2024
Gênero: Drama, Comédia
Sinopse: Edward (Sebastian Stan) é um homem cuja deformidade o distancia da sociedade. Sua busca por aceitação o leva a se submeter a um procedimento que visa uma mudança brusca de aparência. A partir disso, ele enfrentará um dilema ao ter que encarar sua nova realidade.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: A24
Streaming: Indisponível
Nota: 5,0

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *