CRÍTICA – UMA FAMÍLIA FELIZ

CRÍTICA – UMA FAMÍLIA FELIZ

As imagens de abertura de “Uma Família Feliz” são impactantes. Não é fácil digerir a cena de uma mãe enterrando a própria filha e depois puxando a irmã da morta pelo braço de modo abrupto, colocando-a dentro do carro, pisando fundo no acelerador e se jogando, ambas, contra um caminhão em alta velocidade. É assim que começa o filme escrito por uma das estrelas literárias do momento, Raphael Montes, publicado pela Cia da Letras, autor de “Suicidas”, “Jantar Secreto” e “Bom dia, Verônica”, dentre outros.

Do jovem escritor e roteirista, li apenas “Dias Perfeitos”, livro interessante, sem dúvida, mas que peca por algumas situações demasiadamente inverossímeis e um tanto forçadas, ultrapassando um pouco o limite do aceitável; e por ter também, assim como em “Uma Família Feliz”, uma personagem protagonista intragável, difícil de angariar a simpatia do leitor/espectador; falo por mim, claro.

Em seu livro “O Discurso Cinematográfico”, Ismail Xavier esmiuça todos os aspectos da decupagem clássica (ou linguagem cinematográfica clássica) — forma comum à maioria dos filmes produzidos mundo afora, preferida por Hollywood, por exemplo, e que em “Uma Família Feliz” faz uso também. Não sei, entretanto, se correto; audacioso, talvez. Sem dúvidas, arriscado.

Segundo Xavier, a experiência do espectador estaria marcada pela impressão de realidade e pelo mergulho dentro da tela de cinema através, sobretudo, da identificação com os personagens. Nosso olhar, em princípio identificado com a câmera, confunde-se com o da personagem; a partilha do olhar pode saltar para partilha de um estado psicológico, e esta tem caminho aberto para catalizar uma identidade ainda mais profunda. O mecanismo de identificação é um dos pilares da decupagem clássica. Ele potencializa a fruição do filme, fazendo com que o espectador, no limite, sinta na própria pele as tristezas e alegrias vividas principalmente pelo protagonista do filme.

Cria-se em “Uma Família Feliz”, entretanto, um muro desde o primeiro fotograma, uma barreira que impossibilita (ou dificulta enormemente) o funcionamento correto do mecanismo de identificação. Até que se prove o contrário, a personagem de Grazi Massafera, Eva, é uma filicida. E como gostar de alguém assim? Qual justificativa? Não sei se existe algo pior do que matar a própria filha. Para mim, desde o início, a relação com o filme passou a ser uma relação especialmente racional. Um jogo mental para saber quem fez o quê, quem é o culpado de quê e o que aconteceu para personagem chegar onde chegou… e jogos mentais podem facilmente cansar.

A fotografia, em parte, também é responsável por criar essa barreira, mergulhando os personagens quase o tempo todo na penumbra e tornando o longa-metragem ainda mais agônico. Ela bem poderia ter sido trabalhada no direção oposta, como um contraponto interessante ao drama vivido pela família disfuncional.

Massafera sustenta com certa maestria uma personagem complexa, um tanto matizada. E o mesmo pode-se dizer de Reynaldo Gianecchini, que faz um personagem apenas aparentemente insosso. Uma escolha acertada, diria, uma vez que paira sobre ele, que tem pinta de bom moço, mais dúvidas do que certezas. Não é, portanto, um problema de encenação. Os atores estão bem, inclusive as crianças. É um problema anterior, de concepção da personagem. Como disse, uma aposta arriscada. Jamais um erro.

Em “Festim Diabólico”, Hitchcock faz a mesma escolha. O filme mal começa e já somos apresentados à dupla de assassinos. Ali, porém, forma e conteúdo andam juntos, não se sabotam como acontece no filme de José Eduardo Belmonte, o diretor. Não é à toa que o título original do longa-metragem do mestre do suspense é “Rope”. Nada mais provocador do que a imagem de uma corda — objeto usado no assassinato — para um filme concebido e rigorosamente filmado num único plano-sequência. Há uma continuidade temporal entre o crime e o descobrimento dos assassinos que deixa o espectador sem fôlego, como se puxasse uma corda do fundo de um rio e encontrasse algo desagradável na outra ponta.

Não li o livro, dei apenas uma folheada. Fiquei com a sensação de que a experiência da leitura deverá ser sensivelmente melhor, mais interessante. Não acho, porém, que minha opinião mudará tanto.

Revisão de texto: Vanina Cruz


Filme: Uma Família Feliz
Elenco:  Grazi Massafera, Reynaldo Gianecchini, Luiza Antunes
Direção: José Eduardo Belmonte
Roteiro: Raphael Montes
Produção: Brasil
Ano:2024
Gênero: Drama, Suspense
Sinopse: Uma Família Feliz mostra a história de Eva (Grazi Massafera) uma mãe de duas filhas gêmeas e que, após dar a luz ao seu terceiro filho, sofre com a depressão pós-parto, mesmo tudo apontando que a sua vida é perfeita, vivendo em um condomínio fechado no Rio de Janeiro. Por conta deste fato, estranhos acontecimentos rondam a família fazendo com que Eva se torne a principal suspeita desses casos peculiares, incluindo uma investigação pela polícia. Eva se vê sendo questionada e acusada até mesmo pelo seu próprio marido (Reynaldo Gianecchini), a quem Eva mais confia e esperava apoio. A verdade por trás das cercas pode revelar uma crueldade inesperada.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 7,5

Sobre o Autor

Share

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *