CRÍTICA – UMA NOITE SEM SABER NADA

CRÍTICA – UMA NOITE SEM SABER NADA

A Índia é um país complexo demais. São inúmeras as características que nos diferenciam. Basta pensar, por exemplo, no sistema de castas, que foi oficialmente abolido pela constituição de 1950, mas que segue vigorando até hoje, arraigado na tradição e na forte religiosidade do povo indiano. E esse é o mesmo sistema que considera a vaca um animal sagrado. Por isso, não pode ser morta nem ferida e pode circular livremente pelas ruas sem ser incomodada. Numa palavra: estranho. E é apenas uma pequena amostra da idiossincrasia de um lugar que não pode ser explicado por um ocidental, sob pena dele falar bobagem ou agir de modo arrogante. Falo por mim, claro. Principalmente por estar ciente que nem o sistema de castas nem as vacas sagradas são uma unanimidade. Há divisões internas e disputas graves em andamento na Índia neste exato momento que dão uma embaralhada em tudo o que apenas aparentemente está consolidado.

Ao assistir pela primeira vez “Uma Noite Sem Saber Nada” tive a sensação angustiante de ter deixado escapar muitos detalhes, de não ter entendido completamente algumas imagens e algumas associações entre elas e os sons que as acompanham ao longo do documentário justamente por não ser indiano (ou por conhecer a Índia somente através de programas do estilo National Geographic, por exemplo).

Por outro lado, vejo esses “obstáculos” que estão colocados no caminho do entendimento pleno como algo intencional, uma busca pessoal da diretora Payal Kapadia, um modo encontrado por ela de representar uma realidade sinuosa, um tanto obtusa e de difícil acesso, principalmente, como disse, para um ocidental.

Há uma certa independência entre aquilo que se vê e o que se ouve, estabelecendo-se assim uma relação vertical entre uma coisa e outra; o que dá ao espectador liberdade para ver e ouvir como ele quiser. São, portanto, filmes diferentes que se assiste a partir do repertório e do interesse de cada um. Não é um documentário fácil, portanto. Longe disso. É preciso alguma paciência e esforço do espectador numa interação que precisa ser constantemente ativa.

“Uma Noite Sem Saber Nada” tem como espinha dorsal cartas enviadas por L. a seu namorado, ambos estudantes de cinema. Isso dá ao documentário um tom bastante pessoal e intimista, e impede ao mesmo tempo sabermos o que é realidade e o que é invenção. As cartas existem realmente ou foram escritas exclusivamente para o filme? Elas são lidas quase como num sussurro e nos revelam, por um lado, as aflições de um relacionamento proibido pelo sistema de castas; por outro, os impasses e as reviravoltas sofridas pelos estudantes da escola de cinema durante e depois do processo de uma greve longa contra as arbitrariedades do governo indiano, chamado por eles de ditatorial.

A Índia, até onde sei, e imagino que isso não tenha mudado, continua sendo o maior produtor cinematográfico do planeta. São indiscutivelmente muitos filmes que se fazem ali todos os anos. A greve dos estudantes do Instituto de Cinema e Televisão, então, ganha ainda mais relevância nesse contexto. São jovens que vão atuar numa indústria com grande influência cultural dentro do país. A briga, portanto, é grande.

O documentário, então, pode ser entendido como uma resposta ao ceticismo frente a possibilidade de uma representação objetiva daquele microcosmo que é a escola de cinema. Ao mesmo tempo que dá uma visão pessoalíssima dos eventos abordados, ele consegue nos situar frente ao universo político mais amplo de uma Índia profundamente dividida. O filme foi vencedor do L’Oeil d’Or de Melhor Documentário no Festival de Cannes.


Filme: A Night of Knowing Nothing (Uma Noite Sem Saber Nada)
Direção: Payal Kapadia
Roteiro: Payal Kapadia
Produção: Índia, França
Ano: 2021
Gênero: Documentário
Sinopse: L, uma estudante universitária na Índia, escreve cartas para seu namorado. Através dessas cartas, temos um vislumbre das mudanças que ocorrem ao seu redor. Fusão de realidade com ficção, sonhos, memórias, fantasias e ansiedades, uma narrativa amorfa se desenrola.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Indisponível
Streaming: Filmicca
Nota: 7,0

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