CRÍTICA – URSA

CRÍTICA – URSA

“Ursa” (2021) é um filme brasileiro, de produção paranaense, e que teve sua primeira exibição no 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba – o qual, naquela oportunidade, foi completamente online devido à pandemia do Covid. Acredito que tenha sido o primeiro ano de cobertura do Festival pelo Club do Filme, ainda que produzindo textos somente para o Instagram.

Este longa, ainda hoje, em 2024, é um retrato fiel do Brasil e das tantas mães solo que fazem o que podem para sobreviver e continuar provendo, ainda que pouco, mas o suficiente, para seus filhos. Na história somos apresentados a Viviane (Adriana Sottomaior), viúva e mãe de dois meninos, moradora da periferia de Curitiba, que trabalha dia sim e dia também para  continuarem vivendo com um mínimo de dignidade. Muitas vezes se ausentando e terceirizando o cuidado de seus filhos, conta com a ajuda de sua vizinha adolescente, Greice (Mila Girassol), que acha ali uma forma de ganhar alguns trocados. Mas nesta relação há, visivelmente, muito mais do que uma “prestação de serviço”. Tem afeto e tem solidariedade; tanto entre Viviane e a Greice, quanto em relação a Greice e os meninos, Felipe e Luan.

A história por si só traz camadas e mais camadas sobre as dificuldades que a nossa sociedade enfrenta, sobretudo as parcelas compostas pelas minorias – em representatividade. As desigualdades, os subempregos, a falta do estado para aquelas famílias (Viviane provavelmente trabalha em uma escala 6×1 – ou, talvez, até maior – e não tem creche ou algum outro lugar em que possa deixar seus filhos para poder trabalhar) provocam o desamparo total de mães como a protagonista que precisam escolher entre sair para o trabalho todos os dias colocando a comida no prato dos filhos, ou deixá-los morrer de fome. Contudo, embora o filme use de muita frontalidade para se comunicar com o espectador, o roteiro possui meandros para que nosso senso de comunidade elabore um pouco mais sobre o que estamos a acompanhar nesta trama.

Quando tudo parece calmo, quando já constatamos essa primeira camada da discussão social, eis que o filme nos coloca em uma situação de alerta. O roteiro assinado pelo próprio diretor, William de Oliveira, que até então só tinha dirigido curtas metragens, é afiado ao ponto de deixar o espectador incomodado com o que vê. E não menos inteligente é a direção que nos conduz visual e sonoramente por cada acontecimento, sem precisa mostrar toda a cena. Quando os garotos brincam de bola na rua e, por um chute mal direcionado, ela cai na casa do vizinho, não imaginamos a violência que vem a seguir. Gritos, aglomerações, latidos, choros e rosnados. Essa mistura sai da tela e nos toca, nos aflige. O diretor sem muito pudor ainda dá um close, rápido, nos ferimentos dos meninos, mas é o suficiente para dimensionar o horror do que aconteceu ali e nos induzir ao risco de vida que aquelas crianças correm.

Cães que mordem pessoas, crianças e até mesmo seus donos sempre aparecem nos noticiários. E a resposta da sociedade para esses acontecimentos, muitas vezes uma fatalidade, é de normalmente culpar o animal, justificando esse ataque como algo inerente à índole/instinto do cachorro. Em “Ursa”, cujo título é referente ao nome da pitbull, não é diferente, há uma comoção popular imediata em culpar o animal e seu dono, que não estava em casa no momento do ataque. Este, inclusive, é um outro núcleo que o diretor já havia inserido nos minutos iniciais do filme, mas que não recebe tanta importância na trama. Está ali para servir de propulsor dos conflitos vividos por Viviane em relação aos seus filhos.

O diretor sabe que precisa extrapolar determinadas situações para que o público consiga perceber o que está em jogo, para que as dificuldades da protagonista sejam mais cristalinas aos nossos olhos. Somente após a personagem ficar sabendo que seus filhos estão internados é que a atuação de Adriana Sottomaior se transforma. Por conta de um início pouco criativo e com diálogos extremamente mundanos, a nossa percepção é de uma atuação pouco inspirada e até engessada às vezes. Porém, quando o lado mãe aflora, uma chave é virada e a atriz se entrega por completo. Seja pelo seu desespero em ver os filhos desacordados e tendo que enfrentar uma cirurgia; seja pela total impotência de nada poder fazer; seja pelo medo que tem dos avós paternos de seus filhos, que estão ali, não para uma palavra de conforto, mas para insultá-la, atacá-la e ameaçá-la. É no seu total descontrole ao acessar a sala onde agentes do conselho tutelar conversam com o avô paterno que compadecemos de toda sua dor e sofrimento.

Em “Ursa” não há um final feliz, o diretor William de Oliveira faz questão de encerrar o filme antes de um desfecho esperado. Apenas seguimos uma mãe, desolada, levando para o hospital roupas limpas para que seus filhos possam se trocar durante o tempo que ainda ficarão internados lá. E assim, volto ao início desse texto, “Ursa” é um retrato bastante fiel do nosso país.


Filme: Ursa
Elenco: Adriana Sottomaior, Cassia Damasceno, Cinara Vitor, Diego Perin, João Vitor da Silva, José Castro, Luiz Bertazzo, Mila Girassol, Patrícia Cipriano, Paulo Matos, Pedro Gabriel da Rocha.
Direção: William de Oliveira
Roteiro: William de Oliveira
Produção: Brasil
Ano: 2021
Gênero: Drama
Sinopse: Dois meninos entram no quintal de um vizinho para recuperar uma bola e são atacados por sua cadela pit bull, o que dá início a uma série de trágicos desdobramentos que afetam a vida de todos os envolvidos.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Não informado
Streaming: Looke
Nota: 8,5

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