COVARDIA VERSUS CORAGEM: o poder agir em meio às ruínas
Awa é a personagem principal da obra, dirigida pelo senegalês Moussa Sène Absa, e a narrativa se constrói ao longo das experiências de sua vida. O paradoxo coragem-covardia está latente durante o passar dos frames, covardia expressada através do personagem Atoumane, suas ações e reações, e coragem representada por Awa, quando um marco através de uma violência a coloca frente a frente nas decisões que envolvem sua vida não te resta nada além da bravura de se recompor. Awa é constantemente situada enquanto valente, conseguindo lidar de maneira audaciosa a partir de seu sistema comportamental.
As relações de sua família também são apresentadas no filme, Adama é o irmão gêmeo de Awa, como um homem jovem em uma sociedade sexista e etarista onde as cobranças e os comportamentos esperados por seu corpo são diferentes, ele se vê imerso em uma esperança histórica, uma espécie de síndrome do Eldorado, que enxerga conquista de prosperidade a partir da saída do território de origem. Adama acredita que na França seu futuro prospera, que sua cidade está em ruínas e que a sua única saída é pelo oceano, sua emigração custa 458 euros, mas como conquistar sua incerta liberdade vendendo bugigangas nos sinais de Bel Air?
Fatou é a prima dos gêmeos, atravessada pela tradição e se vê na encruzilhada de escolher entre um casamento forjado ou seu direito de amar, sentenciada no dia do seu falecimento de sua própria mãe, frente à contradição de conservar uma tradição, de respeitar quem veio antes mesmo quando o respeito ao outro atravessa o respeito a si. Fatou por dez anos se vê enjaulada, tolhida de sua liberdade, numa cela em que a mesma sempre teve a chave, ao sofrer uma violência a personagem anuncia um basta! E remove as algemas de seu autoflagelo e do suposto flagelo a ser lançado pela comunidade, as possibilidades de preconceito futuro dão lugar a certeza de poder escolher por si.
O filme nos chama à atenção a todo momento, um olhar desatento te faz perder detalhes que explicam muito mais do que os diálogos, a ancestralidade é um ponto abordado de forma frequente, e sempre sete ancestrais, a dualidade entre coletividade e individualidade exerce função de provocar reflexão, de estar só mas não andar só. Outro recurso utilizado pelo diretor foi a inclusão de um narrador personificado e nomeado na história, a presença de Jogoy de fato muda completamente a experiência, e a relação entre os ancestrais e a entidade arbitrária denuncia não só as problemáticas centrais da obra: como o sacrilégio representado pelo estupro de menores e o êxodo da juventude de países africanos em busca de uma ilusão ocidental de progresso; mas também as belezas que germinam como: a liberdade de amar no casamento de Fatou; ou o nascimento de Binta, provando que a felicidade está logo acima da janela.
A trama nos apresenta como conclusão o julgamento de Awa, um monólogo exprimindo seu sofrimento e sua alegria por meio de seu ponto de vista, de suas palavras e de sua alegação, constatando que o que tinha depois dessa cena não importava, Awa estava livre, isso importava, a sua escolha de seguir com a gestação importava, o seu amor por Binta importava, não ter um final projetado como final ajudou muito a ver a obra como uma ficção que não se dobra a um realismo ilusório de final feliz, embora que o deslocamento de emigração tenha sido concluído com êxito não saberemos o que será de Adama em Paris. Refletir sobre conflitos, ancestralidade, família, emigração e tradição com uma fotografia de precisão estética surpreendente estimula o alcance de novas percepções sobre ser e estar no mundo.
Xalé foi o filme escolhido para a abertura da Mostra de Cinemas Africanos em Salvador e eu fui convidada para fazer a cobertura, esta crítica é um dos produtos dessa experiência, poder ter acesso a uma cinematografia não estadunidense foi de fato enriquecedor. A sonoplastia de Xalé foi o ponto alto do filme para mim, poder trocar com os diretores das obras muda completamente a experiência, através do bate-papo com Sène Absa que informações como a composição das músicas realizadas no set de filmagem são compartilhadas ou a dedicatória para a mãe do diretor por conta de seu falecimento no final da produção. Xalé faz parte de uma trilogia chamada de “Destino das Mulheres” junto com as obras Madame Brouette (2002), onde uma senegalesa luta para manter sua independência, e o drama Tableau Ferraille (1997), sobre duas mulheres que se relacionam com um político em ascensão que deseja filhos.
Filme: Xalé (Xalé – As Feridas da Infância) Elenco: Nguissaly Barry, Mabeye Diol, Ibrahima M’Baye, Rokhaya Niang Direção: Moussa Senè Absa Roteiro: Moussa Senè Absa, Pierre Magny, Ben Diogaye, Mandir N. Thiaw, Simon Rieber Produção: Senegal Ano: 2022 Gênero: Suspense Sinopse: Ambientado em Dakar com uma cronologia que muda o tempo, o filme acompanha a história de dois gêmeos de 15 anos, Awa (Nguissaly Barry), uma estudante focada de 15 anos, está vivendo feliz sua adolescência ao lado de seu irmão gêmeo Adama (Mabeye Diol), que sonha com a Europa. Quando sua avó morre, sua tia Fatou (Rokhaya Niang) e seu tio Atoumane (Ibrahima M’Baye) prometem se casar para preservar a união familiar. Mas Fatou não ama Atoumane e este, cansado de esperar para consumar seu casamento, comete um ato do qual não há como voltar atrás. Classificação: 16 anos Distribuidor: Sudu Connexion Streaming: MUBI Nota: 9,4 |