DE GRAVATA E UNHA VERMELHA

DE GRAVATA E UNHA VERMELHA

“Não é um pênis que faz um homem, não é uma vagina que faz uma mulher, como não é um corpo que faz a identidade em geral”, disse João W. Nery, um dos entrevistados no documentário “De Gravata e Unha Vermelha”, quase em consonância com Simone de Beauvoir . Lançado em 2014, o segundo documentário de longa metragem da diretora e psicanalista Miriam Chnaiderman nos permite acompanhar recortes da história de pessoas que transgrediram as noções de identidade, expressão e visão de gênero, vida, amor, prazer, amizade e sexualidade. A partir das experiências e sensações relatadas, temos a oportunidade de nos aproximar e refletir sobre as leituras ricas porque diferentes da hegemonia. Através dos relatos, percebemos também que a misoginia disfarçada e homo ou transfobia, violeta tudo que realce algo marcado na memória como feminino ou aparente abrir mão desse masculino supervalorizado como um tesouro. Essa misoginia é potente, onipresente e assume uma postura de deusa suprema. Afeta a todas as pessoas que ousem ingênua e naturalmente desafiá-la.

O filme com seu tom quase unicamente informativo, consegue ainda assim trazer questões importantes que são inerentes, e talvez os traga por isso, aos temas abordados com as pessoas em questão. “Existem mil sexos dentro de um corpo”, diz uma entrevistada. É nítida a multiplicidade de formas e expressões de ser, pensar, se comportar e experienciar a vida e a própria sexualidade. “De Gravata e Unha Vermelha”, com seu título instigante e provocador já nos garante a certeza de que nada que trate de seres humanos pode deixar de ser multifatorial e impreciso, complexo, como já nos diz Aristóteles. Freud, a psicologia evolucionista com base no darwinismo, a sociologia, a História, ou mesmo a biologia, são juntos ou separados, incapazes de explicar porquê o amor que Rogéria recebeu da sua mãe agiu como catalisador dos hormônios em seu corpo. Ou seja, nenhum conhecimento produzido sobre o ser humano, tendo o próprio ser humano como objeto desse conhecimento, conseguirá definir com a exatidão de um número o que constitui o comportamento e as expressões sexuais humanas.

Com nomes conhecidos e outros que merecem reconhecimento, logo buscamos o aprofundamento que o tema e as personagens exigem. Mas, infelizmente, o filme não nos concede. Em cinco minutos a trilha sonora vai de Candy Mel a Super-Homem do Gilberto Gil . E o problema não é a ecleticidade, mas sim não haver entre as músicas cenas que façam a devida transição. Em todo o filme percebe-se uma trágica montagem. “Super-Homem”, por exemplo, serve como um comando e não um convite ao acompanhamento. Quer dizer, sabemos que a música foi usada para fazer par com as imagens mais lentas. Assim é ordenado que naquele time-code, naquelas cenas, sintamos a tal e exata sensação. Ou seja, um desastre. Intencionalmente ou não, assinada por Tatiana Lohman, a montagem evita traçar um curso fluido, corrente. Tomando assim atitudes que conferem ao filme um tom brusco, por vezes tão somente informativo e superficial, ao contrário do que exige e merece o tema, as personagens e o público que fica desejante de mais proximidade.

Nos momentos nos quais essa proximidade espreita, temos que fazer um grande esforço. Não raro o filme parece boicotar o almejado mergulho que o público tenta dar na tela. Quem nos dera desfrutar de mais de dois minutos, se muito, da voz da Letícia, da Rogéria ou mesmo da já tão escutada (e que seja sempre e mais) voz do grandioso. Até as fabulosas tirinhas da Laerte passam rápido demais , com exceção de uma que é mencionada por ela em um comentário que justifica a maior atenção dada à tirinha. No justo comentário ela, Laerte, a menciona.

“De Gravata e Unha Vermelha” consegue fazer-nos perceber que indubitavelmente as expressões sexuais não são uma escolha. Se são, são escolhas inconscientes e, por isso, ninguém conscientemente as fazem. Ou seja, é um mistério sobre o qual nada se sabe. Tão simples e complexamente acontece. Rogéria nasceu para ser Rogéria, Johny do Luxo, para sê-lo, e assim sucessivamente. Embora não possamos dizer o mesmo daqueles que sobrevivem a esse modelo heteronormativo turbulento se escondendo em disfarces (ou fantasias) de carnaval, por exemplo.

Por fim, Ney Matogrosso, Laurinha, Bianca, Johny, Rogéria e todas as outras pessoas transgressoras dentro ou fora do filme, carregam marcas de violência e libertação nos seus corpos e identidades. A posição econômica intervém na posição social, é claro. Mas jamais, enquanto a heteronormatividade compulsória imperar, o dinheiro irá impedir que tais corpos carreguem marcas, embora o façam com sem igual nobreza e dignidade. Pois são corpos com sem igual nobreza e dignidade.

Assim o filme também é capaz de nos despertar alguma visão crítica em relação aos processos de psiquiatrização, tutela estatal e efeitos adversos que a medicina pode impor a corpos ainda hoje injustamente marginalizados. Podemos perceber também os dogmas católicos e/ou protestantes que podem apedrejar, crucificar ou, se tão bom, impor regras para que chegue a fazer o favor de tolerar. E fica a questão: O que é, de fato, uma aberração? É claro que as afirmações acerca das experiências e sensações íntima e espontaneamente dadas pelas pessoas entrevistadas, servem muito bem para abalar as estruturas dos pilares anteriormente citados.


Filme: De Gravata e Unha Vermelha
Elenco: Dudu Bertholini, Laerte, Rogéria, Ney Matogrosso, Johnny Luxo, Candy Mel
Direção: Miriam Chnaiderman
Roteiro: Miriam Chnaiderman
Produção: Brasil
Ano: 2014
Gênero: Documentário
Sinopse: Com depoimentos de grandes nomes de um mundo transgressor, onde a sexualidade é reinventada, o documentário cria uma vertigem a partir do jeito que cada um encontra de se respeitar na construção do próprio corpo. No uso das roupas e na criação de contornos, vão surgindo formas desruptoras de vida. O estilista Dudu Bertholini entrevista e revela as experiências peculiares de Laerte, Rogéria, Ney MatoGrosso, Johnny Luxo, Candy Mel e outras personalidades.
Classificação: 12
Distribuidor: Imovision
Streaming: Reserva Imovision
Nota: 6,5 

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