Neste assombroso mês de outubro, cabe uma homenagem ao marcante cinema de horror italiano. Da beleza hipnotizante do Giallo à intensidade dos filmes de exploitation, é impossível não destacar os gêneros e subgêneros do terror na Itália dos anos 1960 a 1980. Sejam antagonizados por um assassino sombrio ou uma ameaça sobrenatural, muitas dessas obras, dotadas de mistério, charme, cores intensas e invenções visuais, se concretizaram como clássicos internacionais.
Do pioneirismo de mestres do horror como Mario Bava (A Maldição do Demônio, La maschera del demonio, 1960; Seis mulheres para o assassino, Sei donne per l’assassino, 1964) e Dario Argento (Suspiria, 1977; Prelúdio para matar, Profondo Rosso, 1975) surge um acúmulo do terror italiano em plena década de 1980. Demons – Filhos das trevas (Dèmoni, 1985) é um filme único no seu contexto e é a soma de elementos de uma longa tradição. Dirigido por Lamberto Bava, filho de Mario Bava, que participou ativamente da maioria dos clássicos do Giallo, e contando com a colaboração de grandes nomes do meio, como o próprio Argento de roteirista e produtor, o longa é uma soma de talentos e influências. Mas, ainda assim, consegue distanciar-se das caracterizações de seus progenitores, se utilizando de novas ideias para além dos ecos do passado.
A história se passa em Berlim quando uma jovem estudante recebe o convite de um estranho suspeito, sua máscara metálica e roupas escuras o assemelham ao mais icônico “assassino da luva preta” do giallo. Mas ele apenas entrega o convite da estréia de um filme em um misterioso cinema da cidade. Acompanhada de sua amiga e de um elenco diverso de personagens caricatos, ela se reúne no local de exibição, onde uma armadura de samurai em cima de uma moto segura uma máscara prateada de demônio. Apesar do estranhamento, todos esperam a sessão com relativo entusiasmo. Uma mulher, durante uma brincadeira, veste a máscara metálica e acaba ferindo seu rosto.
O ritmo de Demons é bastante objetivo, não perde tempo em estabelecer sua premissa e parte direto para o que precisa ser mostrado. A potente primeira metade se passa em boa parte dentro da sala de cinema com a exibição do filme sem título. A obra dentro da obra se inicia com a célebre frase, presente em uma pintura de Francisco Goya, “o despertar da razão cria monstros”. Um grupo de amigos em um cenário assustador, encontram um antigo livro e uma máscara de demônio, idêntica a exposta no saguão do cinema. Um deles veste a máscara e se corta, transformando-se em uma criatura demoníaca. O paralelo com a realidade pouco a pouco começa a preocupar os espectadores. Começando pela mulher ferida pela máscara, que vai ao banheiro e sofre a mesma transformação do filme. E, assim, se desencadeia uma série de assassinatos e gritos abafados pelas caixas de som da sala.
“-Os gritos são reais!
-O que está dizendo? É o Dolby.”
O sumiço de alguns personagens começa a se tornar motivo de suspeita. Até que a ilusão se desfaz com o rompimento literal da tela. Um dos espectadores sumidos, transformado em demônio, rasga o telão do cinema e atravessa em direção ao público, instaurando enfim o terror generalizado. O que prossegue é caos e carnificina, enquanto os sobreviventes buscam por respostas e soluções.
É possível notar diversas referências e aspectos comuns ao gênero em um filme imbuído por influências passadas e fundamentos para o futuro. Toda a dinâmica de horror na sala de projeção ressoa certa familiaridade com outras obras populares, como a cena inicial de Pânico 2 (Scream 2, 1997). Em que a cultura de fãs ao redor da ficção sobre o assassino na tela do cinema, permite que o verdadeiro algoz execute os espectadores sem ser percebido. Os demônios com sua maquiagem pálida e a boca cheia de uma espessa gosma verde remetem ao visual de O exorcista (The Exorcist, 1973). Tanto a aparência quanto as contorções, a violência corporal dos efeitos práticos e o livro maligno presente no filme fictício lembram muito A morte do demônio (The Evil Dead, 1983), e as transformações físicas ecoam o clássico Um Lobisomem americano em Londres (An American Werewolf in London, 1983). Além das referências ao próprio Giallo, com destaque para a máscara demoníaca que é uma marca de obras de Mario Bava. Essas influências e diálogos com uma tradição de gênero fazem uma ponte com a metalinguagem presente no longa. É também comum ao horror italiano centralizar suas tramas ao redor de autores, fãs e toda a cultura de consumo de terror, funcionando mais como provocação ao espectador do que um argumento sobre mídia e estímulo a violência.
A invasão da realidade pelos monstros do cinema nos ajuda a compreender de modo geral como funciona o terror, e, de certa forma, a experiência cinematográfica. O salto das criaturas cinematográficas para o público é uma forma literal de observar o efeito perturbador que o gênero tem como objetivo. É preciso que o medo saia da ficção e penetre na realidade para que o espectador deixe de ser passivo e se impacte com o filme. Bava traz isso ao pé da letra e nos coloca de frente para o espelho. Observa-se o público em desespero, primeiro a negação e depois a crença total no filme. Os personagens questionam o cinema, acreditam fielmente que as imagens influem na vida real e que ela é responsável pelo sofrimento. Assim, decidem que a melhor solução é parar o filme, interromper a projeção para que ele não acabe, e com ele, as suas vidas. O que descobrem, no entanto, é que não há uma lógica compreensível ou fórmula de escape. Não há controle sobre o filme ou sobre o que acontecerá com eles. Participam de um pesadelo existencial, no qual não há saída ou resposta, senão a morte certa. A única razão possível é o terror, e tudo aquilo que é necessário para que ele se concretize, como o surgimento de um herói ou sobrevivente.
Esse contexto pessimista em que o filme se encaixa com seu cenário sobrenatural e onírico, sem explicações, faz parte da construção do gênero. A narrativa propositalmente permite furos e por vezes falha com a lógica e a continuidade. Os aspectos mais baratos e as atuações visivelmente dubladas de atores americanos, comum nas produções italianas da época, são menos importantes. A proposta da obra requer um atropelamento do que não é prioridade, do que não contribui ao foco e andamento da escalada de absurdos, excesso de violência explícita e chocante, cenários apocalípticos e desastrosos e um sentimento de caos e perdição. Tudo isso se desencadeia de forma rápida e frequentemente conveniente, como se o longa tivesse consciência e abrisse as portas para o desenrolar da narrativa. Sem perder, no final, todo o charme das luzes néon, dos efeitos minuciosamente construídos e da trilha sonora eletrizante de Claudio Simonetti da banda Goblin. Resgatando o que cativa no Giallo, sem deixar de mergulhar profundamente no exagero.
Filme: Demons – Filhos das trevas (Dèmoni) Elenco: Urbano Barberini, Natasha Hovey, Karl Zinny, Fiore Argento e Paola Cozzo. Direção: Lamberto Bava. Roteiro: Dardano Sacchetti, Dario Argento, Lamberto Bava. Produção: Itália Ano: 1985 Gênero: Terror Sinopse: Duas jovens são convidadas para a reinauguração de um antigo cinema, onde será exibido um filme de horror. Antes da sessão, uma garota se machuca ao colocar uma sinistra máscara prateada exposta no lobby do cinema. Quando a projeção começa, a situação se repete na tela: um personagem do filme que está sendo exibido se fere com uma máscara e se transforma num demônio assassino. Não demora para a situação se repetir fora da tela e, o que era ficção acaba se transformando num terrível pesadelo real. Classificação: 18 anos Distribuidor: Titanus Produzione. Streaming: Indisponível. Nota: 7,0 |
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