DESERTO PARTICULAR

DESERTO PARTICULAR

Freud, durante mais de quinze anos trocou cartas com Wilhelm Fließ e, em uma série dessas cartas, eles discutiram sobre a psicanálise. Em uma série ainda mais específica, sobre bissexualidade. Na época em que as tais cartas eram trocadas, a ideia de bissexualidade já circulava na medicina romântica e na sexologia do final do século XIX. Segundo Élisabeth Roudinesco, desde que Darwin publicou, em 1871, ‘A Descendência do Homem’ teve início “a passagem do mito platônico da androginia para a nova definição da bissexualidade segundo a perspectiva da ciência biológica”.  Assim, a bissexualidade originária, afirmação freudiana, é também um dado da natureza, especialmente a partir da embriologia. Embora possamos questionar as justificativas de Freud para chegar a essa conclusão, aqui não o faremos.

O mesmo Freud afirmou que ora temos metas passivas, outrora temos metas ativas. Ou seja, ora queremos acariciar, outrora receber carícias, digamos. Não há mistério algum nisso, certo? Questionável. O mistério está no que não se vê. Se entrelaçamos a posição passiva à mulher e a posição ativa ao homem, como bem faz nossa cultura ocidental com seus conceitos intrinsecamente misóginos, descobriremos na menor reflexão a confusão. Por exemplo, quem seduz quem? A pessoa dominada seduz a dominadora para que esta possa dominá-la. Quem está na posição ativa e quem está na posição passiva? Seguindo o raciocínio de Freud, nos perguntaremos, em última instância, extrapolando os limites da consciência: o que há em mim e em ti de masculino e o que há em ti e em mim de feminino? 

“Afinal, o que querem as mulheres?”, é a pergunta que, segundo terceiros, teria calado o maior referencial da psicanálise. A ele é atribuída a autoria dessa frase datada e clichê. Porém, em alemão Freud escreveu “Wass will das Weib?” e  “das Weib” é um termo do gênero gramatical neutro que destaca o diferencial sexual do feminino diante do masculino. Portanto, mesmo correndo o risco de redundância, essa frase de Freud pode ser entendida como “O que quer o feminino na mulher?”. E, é claro, se há especificamente o feminino na mulher, há também o masculino. E o mesmo acontece com os homens. 

Com base nessa complexidade que foge da aparente dualidade, uma pergunta, a mais importante, real e fatal, ressoa: queremos mesmo o que queremos ou queremos querer? O policial afastado Daniel, personagem principal de Deserto Particular, filme dirigido e roteirizado por Aly Muritiba, nos leva a questionar exatamente onde mora nosso querer. Se a paixão for baseada num corpo imaginado, o tesão fluirá para o corpo real? A atração é construída  não propria e somente com base no corpo. Mas também e sobretudo, pela forma como aquele corpo fala, anda, se veste, se maquia (ou não). Enfim, seus gestos e sua performance. Sabemos que gênero é uma performance social e datada. Mas e daí? Como isso impacta no mundo real, concreto e cheio de símbolos? O que ocorre quando há o atrito entre um corpo aparentemente indesejável (ou nunca antes desejado)  e o nosso desejo? O que se faz? O que se sente? O tesão resiste? 

Atravessando todas essas questões, Deserto Particular tem o dom de carregar, sem pesar, suas camadas. Há no filme a subalterna subversão de trazer tais questionamentos sob traje de um envolvente romance. O que não quer dizer que o filme disfarça sua questão central. O amor é sua questão central, urgente e real. A forma e sua resolução, me parecem próximas, embora possivelmente incomuns em alguns aspectos. E há uma beleza em perceber que, antes mesmo do público torcer ideologicamente (no aspecto social e político, não individual), se sensibiliza com o trabalho de um belo roteiro. Através da primeira metade do filme, vemos o tanto de carinho e desejo que existe em  Daniel para que ele, por exemplo, atravesse o país. Além, é claro, de algum perigo representado por essa  e outras atitudes tão românticas quanto insanas.  

Aly Muritiba nos guia ao que realmente importa para só depois apresentar a questão central, o conflito. É um brilhante roteiro que sutilmente engendra o grito do sonho progressista de um projeto universal. Amou? Vai! Apenas. E Aly o faz sem descuido com a forma e sem  demasiada concentração num discurso militante através de uma obra audiovisual que guia nosso olhar e, através dele, nosso coração. É algo que merece, no mínimo, um grau razoável de respeito e admiração. 

No filme, surge a frase “felicidade e salvação nem sempre andam juntas”. Essa é uma violência que o cristianismo sempre nos impõe. Pensemos na culpa, por exemplo. Mas no que tange a comunidade LGBTQIA+, essa violência simbólica toma rumos descomunais como, por exemplo, o crime da prática de um tratamento para “cura gay”. Algo que também é elegantemente tocado pelo filme. Tais violências são frutos ou mesmo respostas a medos. Vejamos Daniel, que decide correr em busca de apoio após perder o emprego, ser acusado de um crime, ver a saúde debilitada do pai etc. O medo, por vezes, vem da sensação de que seu mundo moral ou religioso, está a ruir. Porém quando ele transa com outra mulher pedindo que ela use o vestido que ele deu a Sandra, descobrimos que Wally Salomão foi universal ao escrever “Quando fantasio, é quando sou mais sincero”. Freud ou Lacan não seriam mais certeiros. 

O encontro entre Sara e Robson e Daniel, é o encontro de um deserto com “um monte de água presa prestes a correr solta por aí”, como diz o Robson ao se definir. O olho d’água é aquilo que nada consegue estancar, cessar ou impedir. A água, esguia, não teme coisa alguma. Ela atravessa inclusive e sobretudo Deus (ou toda noção mais ou menos inventada dele). Quando uma pedra, mineral, pesada, forte, fálica, não impede a liberdade a fluir, surge imediatamente o questionamento ao seu potencial, de tudo que Daniel aprendeu a ser e achou que era. É a mais intensa pressão, confusão,  descoberta interna e do seu quintal. O  mundo. Algo explode. A barragem se rompe e tudo jorra sem se saber, em direção ao rio.


Filme: Deserto Particular
Elenco: Antônio Saboia, Pedro Fasanaro, Thomas Aquino, Laira Garin
Direção: Aly Muritiba
Roteiro: Aly Muritiba, Henrique dos Santos
Produção: Brasil-Portugal
Ano: 2021
Gênero: Drama, Romance
Sinopse: Daniel é um policial exemplar, mas acaba cometendo um erro que coloca sua carreira e honra em risco. Não vendo mais sentido em continuar vivendo em Curitiba, ele parte em busca de Sara, a mulher com quem vive um relacionamento virtual.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: HBO Max
Nota: 8,0

 

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