DESTERRO

DESTERRO

Existem muitas coisas na vida sobre as quais podemos ter apenas uma vaga noção do que realmente são. O exílio é uma delas. Por mais que o passado sombrio de um país que sofreu com o terrorismo de Estado mais comumente conhecido como ditadura tenha deixado de herança os relatos de pessoas que sobreviveram a essa experiência, viver na pele a dor de ser forçado a um isolamento distante do que ou quem chamamos de lar é diferente. Em boa medida, Desterro chega aos cinemas a partir de 22 de setembro na tentativa de reconstruir essa imagem e sentimento sob outra perspectiva: a mulher e sua liberdade (ou falta dela).

Poesia, beleza e dificuldade

Uma das principais características do filme de estreia na ficção da diretora Maria Clara Escobar é sua poesia. Ao falar sobre a obra, a cineasta fez questão de ressaltar a existência de um poema por trás de cada cena. Não por acaso, o que se tem em quase duas horas de exibição é uma obra de arte, reforçada tanto pela atuação do casal de protagonistas Carla Kinzo e Otto Jr. (nos papéis de Laura e Israel) como pela direção de fotografia de Bruno Risas.

Em tempo, é preciso admitir que Desterro não é um filme fácil e isso se manifesta de uma série de formas diferentes. Saindo da apresentação da vida particular do casal com seu filho Lucas para passar pelas breves interações deles com seus familiares mais próximos, a obra se afasta da estrutura convencional de narrativa tão presente em todo lugar – em especial no cinema hollywoodiano e seus imitadores – para apresentar momentos sociais que parecem o tempo todo desconfortáveis e indesejados.

Nunca à vontade

Na cozinha, enquanto tomam café – ou chá -, Laura e Israel conversam sobre temas banais como quem é forçado a falar algo, qualquer coisa mesmo, apenas para evitar a ameaça do silêncio. Ao mesmo tempo, por mais bobos que os debates sejam, o casal jamais consegue concordar sobre nada, nem mesmo sobre o benefício do mamão para a saúde digestiva.

Aos poucos, esse desconforto vai se ampliando enquanto os protagonistas visitam os pais de Laura para um almoço em família. Se Israel não está presente na cena, é sua esposa que parece jamais estar à vontade. Quando o marido se senta à mesa, parece estar isolado, mais como uma visita ao lado do filho, postos em uma ponta diretamente oposta aos demais.

Na medida em que novos núcleos vão sendo apresentados, essa dinâmica se repete e potencializa até chegar à reta final do filme e mostrar que não apenas Laura e Israel, mas ninguém está confortável com os lugares que ocupam, em especial as mulheres – representadas em monólogos fortes que são um ponto alto.

Imagem acima de tudo

Em diversos momentos, Desterro parece ser uma montagem de fotos extraídas de um álbum de família amador e despretensioso. Isso não diz respeito à qualidade da fotografia que, de fato, é apaixonante, mas sim ao que a diretora premiada escolhe representar.

Ora são marido e esposa sentados à mesa durante o café da manhã, cada um no seu canto, virados para lados opostos com suas bebidas opostas. Ora são mãe e filhas espremidas em um sofá tentando assistir a um programa qualquer e evitando falar tanto para que o ruído não atrapalhe a TV, como para que assuntos que preferem deixar morrer sejam ignorados.

Indo além, na medida em que começa a expandir seus ambientes o filme não apenas fica mais exuberante como também flerta com o absurdo presente em situações bastante reais. Seja na jornada lúgubre de Israel por São Paulo, lidando com a burocracia e o preço literal da morte, ou na longa e trágica viagem de ônibus de Laura através da fronteira do Brasil com a Argentina e uma súbita doença, Desterro alterna entre planos abertos mostrando cidade ou paisagens e tomadas fechadas em que os personagens são o foco exclusivo das atenções e angústias que cultiva.

Emblemático demais

E talvez esse seja o maior problema do filme. Ao se apoiar de forma excessiva na poesia e beleza de suas cenas, Desterro deixa de lado a exposição e os diálogos capazes de conduzir a narrativa e, com ela, o espectador, através da mensagem que pretende transmitir.

Premiada por seu trabalho documental em Os Dias com Ele, em que explora sua relação com seu pai, Maria Clara Escobar parece não fazer uma transição completa para o trabalho ficcional. Enquanto no documentário as cenas falem por si mesmas, na ficção é preciso um pouco mais de texto e subtexto para levar a audiência de um ponto a outro.

É bem verdade que a exposição exagerada, com diálogos e cenas que subestimam a capacidade do espectador de entender o andamento da história e explicam o óbvio, gera tédio e até irritação. Contudo, a ausência dela pode ser como dirigir em uma estrada estranha sem um mapa, mais cedo ou mais tarde vamos nos perder e a única forma de encontrar o caminho outra vez é a repetição. Para um filme, essa não parece uma fórmula que funcione.

Refrescante

Para todos os efeitos, esse problema em Desterro fica pequeno e pouco importante quando nos voltamos para as reflexões que o filme (aparentemente) propõe. Falando sobre a produção, Maria Clara afirmou se tratar de uma obra política sobre o lugar da mulher na sociedade, suas liberdades e o que lhe é imposto como papel e lugar bem como o que é negado.

Enquanto homem é essencial admitir que me falta lugar de fala nesse ponto. Indo além, assim como acho difícil conceber a dor do exílio (ou desterro) em toda a sua amplitude sem de fato ter sido privado da minha pátria, também não posso dizer que sei o que é ter minha voz e meu lugar na sociedade cerceados. De trás dessas palavras está um homem branco hétero cisgênero que, mesmo sendo de classe média baixa, teve uma vida de privilégios com os quais muitos apenas podem sonhar.

Ainda assim, essas barreiras não me impediram de refletir sobre o que a diretora e sua obra se propuseram a colocar diante dos olhos da audiência. Continuo achando que Desterro é um filme difícil. Isso se manifesta no excesso de poética de suas cenas, na ausência de diálogos expositivos e excesso de silêncios contemplativos, na montagem fragmentada e na linha do tempo confusa.

No entanto, o resultado é também uma obra refrescante, em especial para quem sente o ar carregado pela torrente de filmes de ação à moda de Hollywood – onde todo filme, mesmo os dramas, precisa de cenas mais explosivas, alívios cômicos ou exageros visuais. Para aqueles que já vivem fora do eixo em termos de cinema, Desterro talvez seja só mais um. Já para quem busca um motivo para se desprender de velhas fórmulas narrativas e apenas navegar pelos temas em tela sem estruturas rígidas essa é uma ótima oportunidade.

Filme: Desterro
Elenco: Carla Kinzo, Otto Jr., Rômulo Braga, David Lobo, Barbara Colen, Isabél Zuaa, Georgette Fadel, Grace Passô, Maria José Novais Oliveira
Direção: Maria Clara Escobar
Roteiro: Maria Clara Escobar
Produção: Brasil
Ano: 2020
Gênero: Drama
Sinopse: Desterro. Descompasso. O que se passa dentro de Laura (Carla Kinzo) parece estar sempre em um espaço diferente e em um ritmo distinto daquilo que se espera dela. Desconfortável, Laura decide sair de casa e seguir uma jornada pessoal sem rumo definido. Num percurso de autodescoberta, ela se depara com situações imprevisíveis e outras histórias de vida que vão reconfigurar suas próprias ideias.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Embaúba Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 6,3

*Estreia dia 22 de setembro de 2022 nos cinemas*

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