“AIDS é uma doença que dá em viado.”
Ainda que pareça absurdo, em pleno 2021, tem gente que ainda acredita e defende um pensamento retrógrado e recheado de preconceito como esse.
A epidemia começou no início da década de 80 e a expectativa de vida, no Brasil, para quem estivesse infectado era de seis meses, no máximo. De lá pra cá o combate a esta doença ficou cada vez mais eficiente devido aos tratamentos oferecidos e pela educação desta parcela da população que se viu com a necessidade de aprender sobre HIV e Aids e sobre todos os cuidados que teriam de tomar uma vez infectados. Diante disso há quem diga que é muito mais seguro transar com um soropositivo em tratamento do que com alguém que diz ser negativo.
DEUS TEM AIDS, filme dirigido por Fábio Leal e Gustavo Vinagre, é mais um instrumento de educação para a nossa sociedade sobre esta doença por conta de todo o didatismo que, através de depoimentos de pessoas soropositivas, está presente neste documentário. Fugindo um pouco da contextualização histórica da doença e também dos dados científicos, usos de tabelas, gráficos e números, a ideia aqui é trabalhar a contemporaneidade do tema que segue sendo um tabu, algo que fica claro quando Kako Arancibia vai às ruas com uma proposta de conversar sobre Aids e HIV e é ignorado pela maioria das pessoas. Muito embora muitos não se sintam à vontade em conversar sobre Aids, fica nítido no filme que o ato de “ignorar” – decisão da maioria – não é um simples exercer o direito de não ter interesse em debater sobre o assunto e sim um menosprezo por algo que “não faz parte da vida daquelas pessoas”.
Pensado para ser rodado em duas cidades, Recife e São Paulo, justamente por serem as cidades de residências dos dois diretores, o longa sentiu na própria pele, de forma prática, um dos temas abordados: a Sorofobia. Apenas uma pessoa de Recife permitiu que sua voz, sem qualquer alteração, e seu rosto fossem exibidos, deixando então a maior parte gravada na cidade de São Paulo.
Oito diferentes personagens da vida real – sete artistas e um médico pediatra – contam suas histórias e deixam aflorar suas emoções sobre como é a vida de alguém soropositivo. A mudança de pensamento ao longo dos anos, já que no começo da epidemia, aquele que fosse infectado, fatalmente, não teria qualquer futuro. Hoje a realidade é totalmente diferente. Os planos, os sonhos e o futuro fazem parte da vida de todos, inclusive os soropositivos.
Todos eles possuem vivencias diferentes e lidam com a doença de formas distintas também. Há quem utilize a voz para ampliar a discussão e há quem utilize o corpo e as performances que, aqui, se estabelecem como o cinema de choque, estão ali, em cada movimento corporal, com a intenção de causar o desconforto e, a partir daí, gerar as reflexões necessárias.
Realmente é difícil acompanhar algumas cenas, sobretudo a performance de Paulx Castello, que, abertamente, está ali para causar impacto não só nas pessoas que estão assistindo a performance ao vivo como àquelas que estão assistindo através do documentário.
O titulo do filme evoca uma relação com a religião e parece ser muito claro que a igreja tem papel fundamental para a estruturação do preconceito, bem como para a proliferação da doença, uma vez que é contra, de forma enfática, ao uso de todos os métodos contraceptivos – que também possuem o papel de proteção contra as DST’s –, incluindo, obviamente, os preservativos masculinos e femininos. E se não bastasse a existência de uma instituição que manipula e aliena milhares de pessoas, o atual governo brasileiro ampliou todo o desserviço, demitindo especialistas no assunto do Ministério da Saúde e retirando informações sobre HIV/Aids das redes sociais do governo. Não chega a ser nenhuma surpresa essas atitudes irresponsáveis de Bolsonaro, mas ainda causa revolta e surpresa como alguém que, ocupa a posição de presidente de um país, consegue falar o que bem entende sem ter nenhum tipo de responsabilização sobre o que diz e transmite em suas lives.
“Uma pessoa com HIV é uma despesa para todos no Brasil. Se glamouriza certos comportamentos e chega a esse ponto, uma depravação total”.
O recorte do filme é pequeno, pois o assunto é, de fato, muito extenso. Ainda, assim, estes 8 personagens, incluindo uma mulher negra que nasceu com HIV, contribuem com olhares distintos sobre um mesmo tema, a vida.
Segundo dados de 2020 do Ministério de Saúde do Brasil, cerca de 920 mil pessoas vivem com HIV no país. Só em 2019 mais de 10 mil pessoas morreram. Ainda que os números estejam caindo, que mortes estejam sendo evitadas, há ainda muito o que se fazer. E todo esse movimento passa pela aceitação em conversar sobre a doença, em um jogo aberto sobre tudo o que vem junto com ela, o preconceito, as dúvidas, o tratamento e o direito a vida, que precisa ser preservado sempre.
DEUS TEM AIDS choca pelo titulo e possui algumas cenas igualmente fortes, mas no geral possui um tom extremamente suave na sua abordagem. Personagens que mostram suas lutas diárias e compartilham sem nenhuma vergonha suas intimidades. Importante, necessário e urgente.
O cinema mais uma vez prova seu valor na posição de instrumento modificador, afinal, quem assiste a um filme como esse, não sai da mesma forma que entrou.
Filme: Deus Tem Aids Elenco: Carué Contreiras, Ernesto Filho, Flip Couto, Kako Arancíbia, Marcos Visnadi, Micaela Cyrino, Paulx Castello, Ronaldo Serruya Direção: Fábio Leal e Gustavo Vinagre Roteiro: Fábio Leal, Gustavo Vinagre e Tainá Muhringer Produção: Brasil Ano: 2021 Gênero: Documentário Sinopse: Deus Tem Aids é um documentário que explica e dá luz a uma nova perspectiva sobre a AIDS. Sete artistas e um médico ativista dão depoimentos, marcando quarenta anos após o início da pandemia do vírus no Brasil e buscando o enfrentamento da sorofobia nos dias de hoje. Classificação: Não informado Streaming: Não disponível Nota: 7,8 |