Apenas 19 minutos, foi isso o que a diretora Janaína Nagata tinha de material bruto em um aleatório rolo de filme que comprou pela internet. Esta sua aquisição fazia parte de um outro trabalho que estava a desempenhar, mas que se tornou a produção deste documentário chamado “Filme Particular”.
O filme se inicia de forma inocente mostrando animais que aparentam pertencer à savana africana e a pessoa a filmar tudo isso parece estar em um safari com a família, mas não demora muito para percebermos a realidade daquela época – algo que ainda é, infelizmente, muito comum nos dias de hoje –, a família branca gozando de seus privilégios enquanto que as pessoas negras que aparecem no filme estão, todas, de certa forma, na posição de serventes daquela sociedade.
Esse material bruto por si só já incomoda quem o assiste. Se trata de um filme silencioso mas que possui imagens que ecoam em nossas cabeças. Impossível aceitar com passividade o clima de alegria daquela família e seus amigos, enquanto nos deparamos com uma realidade completamente oposta para homens e mulheres negras. Aos poucos e, principalmente, pela determinação da diretora em desvendar cada detalhe daquele filme, vamos obtendo informações valiosas sobre aquele lugar, qual o ano em que o filme se passa e quem são aquelas pessoas.
Primeiro assistimos os 19 minutos em sua forma original, sem interrupções ou cortes, mas quando a diretora começa a interferir para, assim, criar seu filme, aquele vídeo original, despretensioso para alguns, mas já ácido para outros, ganha contornos ainda mais sombrios e se transforma em um verdadeiro suspense, cuja a tensão segue sendo reafirmada diante de uma eterna ascensão. Esse tom de horror, em particular, me lembrou muito os recentes filmes de Jordan Peele (Corra! E Nós).
Nagata começa, então, sua busca frenética para obter o máximo de informações possíveis e, do lado de cá da telona, vamos acompanhando absolutamente todo o processo através de uma tela dividida em que na esquerda está o vídeo original e na direita uma aba do google aberta, muitas vezes no modo anônimo, procurando por tudo aquilo que lhe chama a atenção. Nessa sua busca acabamos por entrar no mesmo ritmo, nesse frenesi, afim de não deixar nada escapar. É óbvio que aquele vídeo cru possui algo muito errado. Aquela realidade demonstrada, ainda que seja vista com muita normalidade no próprio vídeo, para nós, em 2022, já não pode e nem deve ser recebida com indiferença. Este é o maior trunfo de “Filme Particular”, saber que o público será fisgado para aquela trama sem muito esforço. Mas, novamente, ressalto o mérito da diretora que, mesmo com tão pouco, conseguiu desenvolver, através da sua montagem – com uma ideia muita clara de parecer um enorme plano-sequência – que mistura momentos em câmera lenta com acelerações, zoom-in e zoom-out, avanços e retrocessos na película além de uma trilha sonora impactante, um filme assustador e impregnado por um ar bem sombrio.
Muito embora este filme trate de uma época passada e sobre um outro país, seu tema é pertinente nos dias de hoje e dialoga com praticamente todo o mundo, já que a discriminação racial ainda é um mal a ser combatido diariamente em cada canto deste planeta. Este é outro ponto defendido por Nagata, pois fica claro a questão que ela faz de mostrar por tempo suficiente, vídeos atuais coletados do youtube de turistas brancos nas cidades mostradas no filme. A cultura lá ainda é a da exploração e da discriminação do povo negro.
Se quando assistimos os primeiros 19 minutos já nos sentimos mal em como aquele filme, já previamente montado, constrói as relações de uma sociedade desigual, ficamos ainda mais chocados com todas as descobertas que Nagata faz. Os rostos que eram apenas rostos, passam a ter nomes e, com isso, já sabemos que estamos diante de pessoas que não só gozavam de privilégios como eram os responsáveis pela implementação de leis que asseguravam a desigualdade, deixando o povo negro, que correspondia a maioria daquele País – África do Sul – sempre à margem da sociedade.
“Filme Particular” é, sem dúvidas, um ótimo exercício de inventividade da diretora Janaína Nagata. As suas decisões fazem total sentido. Tudo o que decide mostrar, a escolha da velocidade para cada cena, a decisão do que rever mais vezes e a forma como encaixa a trilha sonora nas cenas certas torna tudo, absolutamente, harmônico, mas não no sentido de tornar o filme saboroso, e sim de conseguir potencializar o efeito que ele tem. Ao fim não nos resta mais nada a não ser submergir em nossas reflexões por alguns minutos e assimilar tudo o que foi visto.
Filme: Filme Particular Direção: Janaína Nagata Roteiro: Janaína Nagata, Clara Bastos Produção: Brasil Ano: 2022 Gênero: Documentário Sinopse: A partir de um rolo de filme comprado pela internet sem conhecimento sobre seu conteúdo, a realizadora inicia uma investigação, também online, que vai revelar segredos inesperados sobre as imagens presentes naquele material de arquivo familiar. Neste filme-processo, o poder das imagens em movimento de registrar muito mais do que se imagina ao ligar uma câmera se revela pouco a pouco, na mesma medida em que a montagem cinematográfica se afirma como possível ferramenta aliada de um contra-ataque histórico e político. Classificação: 14 anos Nota: 8,3 *Filme exibido no 11º Olhar de Cinema* |
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