“Fim de Festa” é o mais recente filme do roteirista e diretor Hilton Lacerda, grande destaque e orgulho do cinema pernambucano que esteve à frente da direção e roteiro do icônico “Tatuagem”e por trás do roteiro de “Amarelo Manga”, “Febre do Rato” entre outros filmes sempre bem servidos de algumas das tantas e belas facetas de Recife.
“Fim de Festa” embora apresente as digitais do seu diretor, traz também inovações arriscadas. Há, por exemplo, o “DRACMA”, podcast que investiga parte do crime melhor que a própria polícia e usa a internet para alarmar injustiças. Junto a essa sacada, há o uso de um ousado drone. Assim como no filme, não estamos distantes de sermos espionados e espionadas por essas ferramentas e, por fim, elas tornarem-nos objetos. A maior aposta é o personagem do Irandhir Santos, bem como sua própria inserção no filme. Irandhir é, irrefutavelmente, um excelente ator. Breno, seu personagem, é um policial civil que volta para casa durante o carnaval para trabalhar no caso de homicídio que guia o filme. Ele também carrega nas costas dores inerentes à sua humanidade. Talvez possa ilustrar a complexidade dessa personagem e a magnitude da atuação do Irandhir Santos, saber que Breno tem uma relação excepcionalmente afetuosa com seu filho, Breninho, interpretado por Gustavo Patriota, e às vezes até fuma maconha com ele.
Hilton Lacerda, tanto em “Tatuagem” quanto em “Fim de Festa”, filmes os quais assina como diretor além de roteirista, andou muito próximo ao teatro. Em Tatuagem é explícito, de fato há uma companhia de teatro, o Chão de Estrelas. No caso de “Fim de Festa”, o teatro salta em algumas brechas do roteiro cinematográfico e logo no início do filme lança seu primeiro grito representado por imagens maltratadas de corpos dançando acompanhadas por uma voz em off recitando um drama, poema ou o conto que no filme, para nós, ainda está por ser escrito. Há também fantasias, a famigerada resistência ao minucioso processo e, no meio disso tudo, é claro, há o carnaval. Esse resumo é tão tipicamente teatral que poderia servir para algumas montagens do diretor de teatro baiano Márcio Meirelles. Mas, no entanto, representa apenas “Fim de Festa”. Percebe-se o teatro entranhado, é uma maravilha.
No entanto, como acontece na série “Chão de Estrelas” dirigida e roteirizada pelo Hilton, no que diz respeito à atuação há algo que chama atenção, ou pior, não chama. No caso da série, é comum que nas cenas nas quais as personagens estão atuando, ou seja, representando outras personagens, o elenco atua bem. Nessas cenas que há encenações dos espetáculos do grupo teatral, aparentemente o elenco se sente à vontade para de fato atuar. Já fora delas, é como se estivessem apresentando personagens muito próximos de si mesmos. Em “Fim de Festa” essa sensação se reafirma porque são jovens representando jovens que são jovens e artistas como eles mesmos.
Percebe-se sim qualidade no trabalho do elenco. Porém, há algo que limita na própria direção. Fica perceptível, por exemplo, quando Irandhir Santos e Hermínia Guedes protagonizam uma das cenas mais bem feitas estética, poética e tecnicamente de “Fim de Festa”. Talvez porque, diferente do elenco jovem, estão nitidamente representando personagens muito diferentes deles mesmos e podem expressar isso com fluidez.
Há momentos que, infelizmente, essa fluidez faz-se ausente no filme e se instala sua completa falta. Logo no início de “Fim de Festa”, há a já citada voz em off que lê um poema enquanto vemos imagens mal tratadas. Trechos como esse se repetem e parecem marcar intencionalmente uma quebra. Digo intencionalmente porque em outros momentos temos offs em perfeita sintonia com as imagens e o todo do filme. Por exemplo, as cenas que a personagem Penha, interpretada por Amanda Beça, mostra aos amigos as imagens que ela própria registrou durante o carnaval. Não são apenas as cenas anteriormente citadas que não fariam falta na obra. Há também a primeira cena em que os quatro amigos estão na praia e a cena do Ângelo, personagem do Leandro Villa tomando banho. São cenas que não nos dizem quase nada.
O Ângelo, aliás, é um ponto que chama a minha atenção. Diferente da personagem Indira, interpretada por Safira Moreira, que pouco fala, algumas falas do Ângelo parecem surgir para causar um desconforto previsível e mal sustentado. Por exemplo, há uma cena na qual ele fala que sua mãe também foi babá enquanto tinha ele e mais quatro irmãos para cuidar. O desconforto causado por essa fala surte pouco efeito em cena e parece um recurso ineficiente do roteiro. Ângelo também insinua alguma admiração/proximidade com a Valderice, funcionária da casa e ex-babá de Breninho, interpretado por Gustavo Patriota, e sua amiga Penha. Me parece que Ângelo foi pensado para ser exata e somente algo enquanto outras personagens têm mais complexidade e liberdade de ser. Não está nítido o porquê dessas duas personagens, ambas encenadas por pessoas pretas, serem justamente as mais superficiais, sendo a superficialidade incomum na obra do Hilton, bem como em todo o filme.
É a complexidade e a profundidade do ‘Fim de Festa” que o tornam envolvente e surpreendentemente prazeroso, leve. E à medida que o filme avança, percebe-se uma evolução, amadurecimento no que diz respeito à atuação da Amanda Beça, da Safira Moreira e do Leando Villa. Mas ainda com deslizes que parecem também ser deslizes do roteiro ou da direção. A atuação do Irandhir, da Herminia Guedes, do Ariclenes Barroso e do rapaz que representa a testemunha em situação de rua, são excelentes. Mas deixam a incógnita em relação ao tratamento dado à atuação. Principalmente porque Irandhir Santos e Herminia Guedes protagonizam uma das sequências mais bem feitas estética, poética e tecnicamente.
O Hilton, sendo um nome de destaque entre os roteiristas da sua geração, não se deixa levar por histórias com apenas um núcleo ou camada. Em “Fim de festa”, o roteiro preserva bem seus planos de fundo, os deslocando e confundindo-os com o plano em destaque. A mágica é que o público nem sequer percebe. Somos frequentemente perseguidos por formatos básicos e prontos, pouco inovadores seguindo a jornada do herói e só. Em “Fim de Festa” temos mais do que isso. Por fim, o filme não se retém a solucionar seu primeiro problema, o evento que traz de volta o Breno para casa, não se prende somente a essa narrativa. Ao alternar bem seus planos, o filme revela com fluidez camadas sem perder-se entre elas ou fazê-las desiguais em nível de beleza e importância.
O filme ainda consegue ser inteligentemente irônico. Um brasileiro defende o fim do carnaval alegando que nenhum país bem desenvolvido tem carnaval. Quase como uma resposta, o filme mostra que os moradores dos tais países desenvolvidos fazem mal uso da nossa fama, fome e carnaval. Mesmo tendo como principal motor um caso de homicídio, o filme consegue ser instigante também em seus outros planos. Consegue também ser leve, envolvente, remontar em nós algum remorso, despertar algum prazer e, assim, valer a pena.
Filme: Fim de Festa Elenco: Irandhir Santos, Gustavo Patriota, Amanda Beça, Leandro Villa, Safira Moreira, Hermila Guedes Direção: Hilton Lacerda Roteiro: Hilton Lacerda Produção: Brasil Ano: 2020 Gênero: Drama, Suspense, Policial Sinopse: Breno (Gustavo Patriota) e Penha (Amanda Beça) conhecem Ângelo (Leandro Villa) e Indira (Safira Moreira), um casal que veio da Bahia para festejar o carnaval. Em uma confraternização, os quatro jovens se reúnem na casa de Breno, mas a quarta-feira de cinzas traz uma má notícia: uma jovem francesa é brutalmente assassinada por asfixia. O crime faz com que o pai de Breno (Irandhir Santos), um policial civil, retorne mais cedo de suas férias para investigar o caso. Além do incômodo de ter estranhos em sua casa, o oficial acaba encontrando vestígios afetivos no desdobramento do crime. Classificação: 16 anos Distribuidor: Imovisiom Streaming: GloboPlay, Telecine Nota: 7,5 |