Atenção: o texto a seguir contém alguns spoilers.
A memória tem sido um assunto recorrente em produções de todos os gêneros. Algum tipo de magia cerca essa parte de nossos (in)conscientes de maneira que sempre estamos sendo presenteados com projetos que abordam este tema.
Então eu me pergunto se escrever é como andar de bicicleta. Será possível nunca desaprender como fazê-lo? Posso afirmar que ainda consigo escrever da mesma maneira que fazia um ano atrás, porém não sei se será possível me fazer entender com esse texto.
Fruto da Memória (2020) é um filme que se inicia sem alarde, uma obra silenciosa que capta por meio da simplicidade da vida mundana os abismos dentro de cada um, mais precisamente dentro do nosso protagonista, que é o centro da narrativa criada pelo diretor e roteirista Christos Nikou.
Em uma Grécia assolada por uma epidemia de amnésia, em um tempo não identificado, vive o personagem principal do longa. Logo na cena inicial, podemos vê-lo em seu apartamento, sozinho e emoldurado no canto do enorme espelho que cobre quase uma parede inteira de seu quarto. No rádio, ele escuta o noticiário, que anuncia um novo projeto para àqueles que sofreram com a perda da memória: um “tratamento” onde o paciente pode começar uma nova vida, uma vez que ele não se lembra de absolutamente nada de sua vida “anterior”. A partir daí, seguimos este homem em suas atividades diárias, cotidianas e banais, como acariciar o cachorro do vizinho e comprar maçãs no mercado. Enquanto anda pela cidade, vemos o pequeno caos criado pela nova doença. Ainda sem saber o que será do protagonista, seguimos sua rotina de perto até que ele mesmo acaba por se esquecer também.
Uma vez no hospital, ele recebe um número de identificação e inicia seu tratamento. É como assistir crianças na pré-escola aprendendo a viver, basicamente. A única coisa que esse personagem aparenta não se esquecer é de que gostava muito de maçãs. Só o que ele parece comer são essas frutas, até que em certo momento, um comerciante menciona que maçãs são boas para a memória. É quando ele decide deixá-las de lado para começar a comer tangerinas.
Até então, assistimos a banalidade do dia a dia do protagonista enquanto cria sua vida nova. Ainda que o roteiro não seja um daqueles cheios de reviravoltas, é possível criar empatia pelo personagem e, no meu caso, somente por ele. Talvez seja proposital que esse indivíduo seja o mais bem construído. Seguimos sua rotina de atividades para se tornar um adulto “apto” a viver em sociedade. Essa parte é a que mais me agrada no roteiro de Fruto da Memória. Todas as atividades indicadas pelos médicos devem ser fotografadas e guardadas em um álbum. Assim, criam-se memórias para esses pacientes que perderam tudo. Essas memórias, que vão de tentar andar em uma bicicleta a bater um carro contra uma árvore, vão tornando-se mais complexas à medida em que o tratamento vai avançando. É nesse ponto que começamos a notar inconsistências na situação desse personagem. Em certo momento, ele cantarola a letra de uma música que toca no carro, em outro, ele ri de uma amiga que está passando pelo mesmo tratamento quando ela diz que quatro minutos são 154 segundos, ou quando em um passeio pelo parque ele encontra o cachorro do vizinho e o chama pelo nome. De forma sutil, a história de fundo desse homem quieto vai se desenrolando e vamos entendendo melhor o que se passa com ele.
Talvez seja o fato de ter comido muitas maçãs, mas a doença que atinge a todos parece não ter efeito sobre ele. Uma pessoa que busca o esquecimento “na marra” deve ter passado por um sofrimento muito grande. Às vezes, lembrar é tão torturante quanto esquecer, e é nesse ponto que o dilema do protagonista se encontra. Onde todos ao seu redor não se lembram de como eram e podem “recomeçar” do zero, sem nada que os impeça ou os segure, ele tenta, da mesma forma fingir que seus traumas também estão em um lugar distante, longe do alcance dele mesmo e de qualquer outro.
É curioso como o roteiro desse longa escolhe retratar os personagens. Como crianças crescendo, essas pessoas esquecidas agem de forma livre e sem preocupações, quase que friamente, como um animal que morde o outro apenas para saber como é. Mecanicamente, esses personagens secundários seguem as indicações médicas fielmente, mais como uma obrigação do que qualquer outra coisa, deixando de lado talvez a parte mais importante do exercício, que é a de aproveitar cada nova lembrança e guardar na memória o sentimento vivido quando ela foi criada. Nesse pequeno mundo onde essas pessoas são livres para experimentar, a angústia de já ter experimentado dos bons e maus momentos da vida persegue o personagem central do filme.
O esforço do protagonista para esquecer de sua própria miséria é o que nos leva a ter cada vez mais empatia por ele. Uma das partes que mais me emocionou ao ver esse filme foi quando uma de suas atividades pedia que ele visitasse um paciente terminal e formasse um vínculo com este até o fim de sua vida, que acompanhasse o velório e todas aquelas burocracias. É simples, e ainda assim tão bonito o modo com o qual esse personagem lida com a atividade, que funciona como um ponto de arranque quase no final do filme. É talvez esse o ponto onde ele enxerga de fato sua situação e, ainda que não tivesse esquecido como os outros, o processo de luto por essa pessoa que acabou de conhecer e tão cedo já se despediu lhe leva a abrir uma nova porta dentro de si.
Assim como no seu início sem alarde, Fruto da Memória, em sua totalidade, é um filme simples, sem nada de muito grandioso, mas que nos leva a refletir sobre como a nossa memória guarda a nossa existência. Sem ela, é quase como se perdêssemos nossa humanidade e nos tornássemos meros seres “vivos” andando por aí. Como se nossas experiências e vivências tivessem o tempo certo para serem aproveitadas. Assim como uma semente leva o seu próprio tempo para se tornar um fruto, nossas personalidades e particularidades também levam o seu próprio tempo para se tornarem o que são. No final, a memória é tudo aquilo que temos, o que somos e o que fomos um dia.
Filme: Fruto da Memória (Mila) Elenco: Aris Servetalis, Sofia Georgovassili, Anna Kalaitzidou, Argyris Bakirtzis, Kostas Laskos Direção: Christos Nikou Roteiro: Christos Nikou, Stavros Raptis Produção: Eslovênia, Grécia, Polônia Ano: 2020 Gênero: Drama Sinopse: Em meio a uma pandemia mundial que causa amnésia repentina, Aris, de meia-idade, está inscrito em um programa de recuperação criado para ajudar pacientes não reclamados a construir novas identidades. Classificação: 12 anos Streaming: Não disponível. Nota: 8,0 |