Você sabia que um dos maiores nomes da música brasileira também é um dos mais potentes símbolos de contestação de gênero no Brasil? Ney Matogrosso não é apenas cantor, performer e ícone cultural. Ele construiu, ao longo de sua carreira, um projeto artístico e existencial baseado na desobediência e na contradição. Seu trabalho recusa os enquadramentos previsíveis e faz da arte um espaço de liberdade, ambiguidade e afirmação radical. Homem com H
Lançado em 2024 e dirigido por Esmir Filho, Homem com H não é apenas uma cinebiografia. É, sobretudo, uma obra política e estética que reafirma a arte como território dissidente. Ney, vivido pelo ator Jesuíta Barbosa, aparece como um corpo indomável, que não se deixa capturar por categorias fáceis. Sua persona andrógina, ambígua, teatral e radicalmente sexual atravessa a história recente do Brasil tensionando as normas de gênero e desestabilizando a lógica binária. Nada no filme é por acaso. Cada cena, cada nudez, cada enquadramento e cada performance são escolhas políticas que afrontam os moralismos e retrocessos do presente.
Desde os anos 1970, quando surgiu como vocalista da banda Secos & Molhados, Ney constrói sua carreira a partir dessa recusa. Como disse João Ricardo, fundador do grupo, em depoimento registrado por Antonio Carlos Morari no livro Secos & Molhados: A História Completa (1974), o nome Secos & Molhados “não determina coisa alguma, se abre para todos os gêneros”. A escolha já sinalizava a intenção de desorganizar os limites e habitar a contradição. Filho de militar, Ney cresceu sob violência e repressão e fez do palco um espaço onde poderia existir de forma plena. Durante a ditadura, assumiu uma figura andrógina, sensual e ambígua, transformando sua própria imagem em instrumento de provocação e liberdade.
O filme de Esmir Filho herda essa ousadia e a atualiza para a linguagem cinematográfica. Ao contrário do que costuma ocorrer no audiovisual brasileiro, tradicionalmente heteronormativo, Homem com H não disfarça ou higieniza o erotismo masculino e a homossexualidade. Pelo contrário. Faz dessas imagens uma escolha política e estética, construindo o que o crítico cultural Richard Dyer chamou, em The Culture of Queers (2002), de estética homossexual. Dyer define essa estética como um conjunto de códigos e sensibilidades historicamente associados à homossexualidade, marcados pela teatralidade, pelo artifício, pela celebração do exagero e pela visibilidade explícita da sensualidade masculina. Não se trata apenas de representação, mas de uma forma de existência pública que desafia os valores normativos sobre prazer, corpo e identidade.
Esse gesto de tornar visíveis corpos e prazeres dissidentes também dialoga com a reflexão da socióloga Berenice Bento, que, em O Que É Homossexualidade (2008), defende que as expressões homoafetivas e homoeróticas sempre foram alvo de tentativas de silenciamento e controle. Exibi-las é, portanto, um ato político de resistência. Homem com H reconhece essa tensão e recusa qualquer apagamento. O erotismo homossexual não é apresentado como tabu ou alegoria, mas como experiência concreta e afirmada.
O trabalho de Jesuíta Barbosa transcende a atuação biográfica. Ele constrói uma corporeidade performática que encarna as teorias de Judith Butler sobre a performatividade de gênero, que entende gênero como efeito produzido por atos, gestos e performances reiteradas socialmente. Barbosa não interpreta Ney no sentido tradicional, mas reinventa seus gestos, sua voz e sua presença cênica como manifestações de uma liberdade que persiste mesmo diante da repressão.
Outro aspecto que o filme articula com precisão é a estrutura familiar como campo de tensão de gênero. A figura do pai, militar e violento, encarna o modelo rígido de masculinidade tradicional. A mãe, interpretada com delicadeza por Hermila Guedes, ocupa o lugar da mulher conciliadora, reafirmando papéis históricos do patriarcado. Ney, nesse ambiente, atua como corpo dissidente, recusando-se a reproduzir os roteiros familiares e, no palco, subvertendo-os.
Se há 50 anos Ney Matogrosso já tensionava esses limites e nada mudou tanto quanto deveria, o que estamos construindo hoje? Homem com H funciona como manifesto audiovisual que nos obriga a encarar essa pergunta. Até que ponto nossas vidas, nossos corpos e nossas expressões seguem obedecendo às regras de gênero impostas? E como o cinema e a arte podem, ainda hoje, seguir tensionando e desorganizando esses limites?
Referências
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York: Routledge, 1990.
BENTO, Berenice. O Que É Homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.
DYER, Richard. The Culture of Queers. New York: Routledge, 2002.
MORARI, Antonio Carlos. Secos & Molhados: A História Completa. São Paulo: Codecri, 1974.