Luca

Luca

Luca é um daqueles filmes que reforçam a tese de que após a estréia o filme passa a ser do público e, assim, permitindo, então, diversas intepretações a partir desse momento. Muito embora o diretor Enrico Casarosa tenha dito que este filme se baseia em uma amizade entre ele e seu amigo de infância Alberto, a verdade é que vários entendimentos foram realizados e muitos deles fazem sentido. Ou seja, mesmo que a ideia tenha sido outra por parte do diretor, o filme passa a ser de cada um que o assiste e, assim, vamos ter infinitas percepções e todas, às suas maneiras, são válidas.

Antes de tudo é preciso elogiar o trabalho artístico, sobretudo, na riqueza de detalhes da cidade em que se passa essa história: Uma Riviera Italiana chamada Portorosso. O longa tem como um dos seus objetivos nos levar a esse pedacinho da Itália e já consegue antes mesmo da primeira cena, pois, enquanto estamos vendo a apresentação inicial daquele castelo já conhecido da Disney e em seguida a logo animada da Pixar, uma canção italiana já nos leva ao frescor desta terra charmosa e de cultura ímpar. Mas é quando somos apresentados à cidade e percebemos a qualidade na representação das construções bem coloridas, em tons opacos e apresentando um certo desgaste por conta do tempo, que a imersão se dá por completo.

Afora este cuidado na representação do espaço físico pelo qual o filme se desenvolve na maior parte do tempo, os personagens possuem o mesmo zelo em suas caracterizações. E neste ponto é que preciso definir para qual direção irá este texto: Transfobia.

Luca é considerado pela sociedade como um monstro marinho. Ele vive se escondendo com medo de ser morto. E quando começa a ter vontade de desbravar o mundo, achando que este não é tão perigoso assim, a sua família, sabendo dos perigos reais para alguém como o Luca em uma sociedade como a nossa, tenta o esconder ainda mais. Luca que até então era sozinho, encontra, por obra do acaso, Alberto, um monstro como ele, que se “traveste” ao sair do mar para se tornar igual àqueles “monstros terrestres”.

Quando em contato com a água, possuem cores vibrantes e chamativas, são belos e brilhantes, mas ao sair do mar se transformam, passando a ter o aspecto de um humano comum, passando, assim, despercebidos por aqueles que, se soubessem das suas identidades reais, os matariam.

E aí está a relação que faço com a transfobia. O que é senão a violência contra alguém que não segue os padrões de gênero e de sexualidade descritos como o certo por esta sociedade careta, religiosa e conservadora? Ser aceito como somos é um grande desafio e as vezes a coragem é menor que o medo.

A identidade por trás daquela fisionomia de uma criança com grandes olhos precisa a todo momento ser suprimida para que seus anseios e sua vontade de ser livre, possam ser, finalmente, conseguidos. Ou seja, Luca precisa se anular, assumir um papel para, só assim, através dessa “mutilação”, ser aceito pela sociedade e gozar de certos privilégios.

E se isso por si só já não é triste o suficiente, a história de Alberto é ainda mais dolorosa. Enquanto Luca sempre teve sua família por perto, Alberto foi abandonado pelo pai e vive sozinho há muito tempo.

É nesta amizade que percebemos um novo começo para a história de Alberto. Ele tem a chance de viver e compartilhar com seu novo amigo tudo o que já sabe desse novo “mundo” que se abriu para eles. É muito bonito ver o nascimento da amizade e, em poucos minutos, se desenvolver para o sentimento de amigos inseparáveis. Ambos compartilham de muitos sentimentos como a vontade de usufruir de uma liberdade que nunca tiveram, a felicidade por ter encontrado alguém para poder compartilhar as trivialidades do dia a dia e a mesma perspectiva sobre um futuro em que viveriam juntos desbravando o mundo.

Esse sentimento de liberdade, que eles tanto almejam, é representado pela Vespa, um símbolo italiano, principalmente, da década de 40. E a história da criação da Vespa até se confunde um pouco com os personagens principais dessa animação da Pixar. A vespa foi criada na década de 40 por conta de uma preocupação com a mobilidade das pessoas em uma Itália pós 2ª guerra mundial, que possuía naquele momento uma economia de migalhas e suas estradas estavam em um estado deplorável. A Vespa então traria fluidez e, mesmo naquelas estradas, conseguiria conectar os lugares, as informações e as pessoas.

É justamente isso o que é trabalhado aqui. Luca é um personagem fluido, interessado em todo o conhecimento que puder adquirir e, sobretudo, um personagem sem fronteiras. Alberto, por sua vez, que já sofreu bastante (Abandono, preconceito e o desprezo de seu próprio amigo), prefere lidar com aqueles que já o aceitaram assim como ele é.

E lágrimas são inevitáveis quando percebemos o amor que ele tem por seu amigo e que, ao fazer com que Luca possa embarcar numa viagem de conhecimento, sem ele, está, ali, vivendo, também, aquela sensação de ser livre que sempre repetiu ao longo da trama.

Luca possui um final emocionante, mas não é capaz de concluir os arcos de modo totalmente satisfatório. A simplicidade com que tudo é solucionado contradiz todo o esforço que vivenciamos nesta aventura dos dois amigos. O medo que até então era real e palpável simplesmente some dando, assim, tons de esperança para o espectador.

Se por um lado, como tenho ouvido por aí, o filme traz um ar infantil, tendo então essa impressão de simplicidade em tudo o que fora contado, ele também possui visões mais maduras sobre temas e personagens representativos de um período como o nosso. E para tanto era necessário um pouco mais de compromisso com a coerência do que é abordado no início e meio do longa com as respostas dadas ao fim.

As metáforas existem. Estão ali para que percebamos e para que possamos refletir sobre uma sociedade ideal. A amizade entre Luca e Alberto, referenciada por uma amizade de infância do diretor, é o motor impulsionador para tudo o que diretor parece querer nos contar através de letras coloridas e brilhosas.

É esse olhar afetuoso que deixa tudo muito gostoso de assistir. Não canso de repetir. Mesmo com alguns equívocos nas escolhas de roteiro, Luca é a melhor animação da Pixar desde Viva: A Vida é Uma Festa.


Filme: Luca
Elenco: Jacob Tremblay, Jack Dylan Grazer, Emma Berman, Marco Barricelli, Maya Rudolph, Jim Gaffigan, Saverio Raimondo
Direção: Enrico Casarosa
Roteiro: Enrico Casarosa, Jesse Andrews, Simon Stephenson
Produção: Estados Unidos
Ano: 2021
Gênero: Animação
Classificação: Livre
Streaming: Disney+
Nota: 8,0

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