MANHÃ DE DOMINGO

MANHÃ DE DOMINGO

Manhã de Domingo é um filme dirigido por Bruno Ribeiro que também participa do roteiro e da produção. O filme foi lançado no início deste ano e tem sido muito bem recebido pelos festivais de cinema. Entre eles, Berlinale. O filme está agora no 11° Olhar de Cinema.  E quando essa informação chega vinda de certos grupos e anunciada de certa forma, entendemos mais ou menos do que se trata: protagonismo negro. No ano de lançamento de “Medida Provisória” que antecedeu “Mariguella”, em meio a tantos ecos, o que se espera? No entanto, Manhã de Domingo me decepciona. Esta é a sua maior vitória. 

Viemos do outro lado do pêndulo: pouca representação, narrativas subalternas, embranquecimento, domínio hegemônico de um igual discurso. Estamos agora passando pelo extremo oposto: representatividade como algo quase que suficiente para dar conta de outras vidas e narrativas. Isso vende, é importante, pseudo-consciente e repito: vende! É aí que mora parte do problema e da solução.  Por que solução? Porque valoriza economicamente e dá tal retorno a figuras específicas que podem teoricamente significar que pessoas como ela podem ser valorizadas e ascender econômica e socialmente. A questão é: e as demais? Depois disso, para onde vamos? Como? Chegamos ao poço luxuoso onde se é tudo que sempre sonhamos ser e nunca acreditamos que poderíamos sê-lo. Aliás, o discurso hegemônico nunca nos deu a oportunidade de  nos certificarmos de que podemos ser tudo de bom também. Bem como ser tudo mais se assim quisermos. E como parte da própria proposta já se percebe seu problema: a vida não necessariamente é compatível com esse poço luxuoso e fraudulento. Não que não possamos ser tudo de bom. Podemos sim, é nítido. Mas porque a vida é cheia de vazios insignificantes que deixam de sê-lo quando atribuímos a eles outros, íntimos, próprios significados. É essa tranquilidade de ser comum, embora especial, que Manhã de Domingo traz. 

No mundo virtual, tudo é muito, tudo é lindo ou desastroso. Foge-se do padrão recriando outros. Tudo parece privado. Mas nem tudo é  profundo, íntimo ou familiar. Nada é, de fato, real. Se é que o real realmente existe, é algo muito mais próximo de Manhã de Domingo do que de heróis e heroínas que, sinceramente, eu não quero ser. A vida prosaica com seus mistérios inabaláveis tem sua insignificância que é  por nós mesmo destruída, não por uma super narrativa. Existir em paz, ser comum, banal, sem necessariamente atender a uma lógica heteronormativa, liberal, capitalista. Embora atendamos a todas elas, superamos-as pelo simples fato de sermos nós corpos recém libertos. É isso que me parece uma manhã de domingo: afeto, dom, talento, família, prosaico, normal. 

O talento da Raquel não é utilizado como superpoder ou super nada. Ela é talentosíssima. Mas é apenas humana. Perene, normal. E isso é algo que ultimamente tem sido raro.  Em parte por conta do movimento de pêndulo que anteriormente citei. Mas vale também ressaltar que o fato de um filme não recorrer à militância no sentido mais exuberante, não quer dizer que ele não milite ou mesmo que seja insensível às questões sócio-políticas da sociedade. Por exemplo, a Raquel é talentosíssima e dá aulas de piano a uma criança branca na casa dela e quase sob a supervisão de quem parece ser sua mãe, uma mulher branca. E talvez ressoe o que ainda é um indesejável padrão porque também estamos, infelizmente, demasiadamente acostumados e acostumadas com as violências. Chegamos no tal ponto de apenas enxergá-la. E profundamente negá-la, como é feito através das mídias de espetáculo, também é uma forma de reafirmá-la. Parece um caminho sem saída. Mas talvez só precisemos lembrar de exalar a nossa humanidade. Talvez assim ela seja mais e melhor reparada por quem assiste. Talvez essa pessoa se pergunte: E quem disse que ela também não faz concertos? Embora, ela não precise ser a Nina Simone. Ela pode ser apenas ela mesma. 

Acredito, sinceramente, que a elaboração da linguagem cinematográfica e artística em geral, ganha muito com todo o movimento que aqui trago à discussão. A representação é fundamental. Mas não opera da melhor forma se sozinha. Precisamos repensar e afetar as narrativas. Manhã de Domingo o faz com maestria. A Direção de Arte, assinada por Diogo Hayashi, é muito bem elaborada na busca por se fazer presente através da simplicidade. O tratamento de cor, assinado por Alexandre Cristitaro (salvo equívoco), não é simplista, monótono ou rotulador. O Som assinado por  Bernardo Uzeda, Gustavo Andrade e a microfonista Mariana Graciott, não comete excessos. Algo que nesse caso seria ainda mais negativo. Portanto, faz muito bem. As atuações são perfeitas para deleite e desfrute. A Fotografia assinada por Wilssa Esser, por sua vez, nos excita, atiça alguma curiosidade e/ou evoca alguma lembrança.  Ela se vincula com algum íntimo rastro de lago familiar. Essa familiaridade é a estrela do filme. O roteiro e a montagem têm uma fluidez imprescindível (um salve ao admirável montador Vinícius Silva que dirigiu o fabuloso” Quantos era pra tá?”, um novo clássico, guia).  No roteiro assinado pelo diretor e pela Tuanny Ribeiro, não se percebe a intenção de nada. Isto é, o filme envolve e conta sua história sem exibir velhos truques. Se sente a ação em si. O filme não carece de uma explosão fruto de falsas necessidades. É simplesmente uma história e sua forma encontra seu fim. Sua familiaridade, repito, brilha nele todo, em Raquel Paixão, em mim. 


Filme: Manhã de Domingo
Elenco: Raquel Paixão, Leonardo Castro, Silvana Stein, André Pacheco, Indira Nascimento, Valéria Lima, Ítalo Pereira, Layza Griot
Direção: Bruno Ribeiro
Roteiro: Bruno Ribeiro e Tuanny Ribeiro
Produção: Brasil
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: Um show está chegando. Gabriela está sentada ao piano e tocando – para ela, para ele e para sua mãe. A música muda cada vez e ainda assim permanece sempre a mesma. Memórias surgem, o presente se entrelaça com o passado. Quanto mais fundo ela vai, mais perto ela se aproxima de encontrar paz interior e reconciliação.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Reduto
Streaming: ainda indisponível
Nota: 8

 

 

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