MEDIDA  PROVISÓRIA

MEDIDA PROVISÓRIA

Enxergar nas faces o olhar que atravessa séculos e no corpo as vitórias de milênios, reconstitui em todo olhar atento algo capaz de tornar-nos sempre e mais ricas e ricos.

“Medida Provisória” é o primeiro filme dirigido pelo também ator e escritor Lázaro Ramos que além desse grande nome tem na equipe outros tantos nobres com a finalidade de contar a história desse filme que já é o filme com maior número de pessoas negras atrás e na frente das câmeras do cinema nacional. Também assim, o filme se aproxima da realidade brasileira. “Medida Provisória” traz também toda a ambivalência que penetra nossos dias geralmente de forma violenta. O filme, no entanto, elegantemente recusa-se a mostrar armas em cenas que não sejam para ressignificá-las (três ou quatro). A luta com o cérebro, a inteligência, precede a realizada através do corpo e engrandece a d`alma. As sutis a ancestrais formas de luta concentradas tão somente na existência e preservação da vida, trouxeram-nos a conquista maior: sobrevivência. Ver um desfile de vida, amores, sabedorias, inteligências e afetos anula, como no filme, qualquer tentativa de aniquilamento. Mesmo que por decreto.

“Medida Provisória” nos apresenta um primeiro ato que pode fazer-nos sentir alguma confusão fruto da fragmentação de informações de forma tão sutil quanto concentrada no universo do filme. Tal fragmentação pode causar confusão aos olhos habituados à apresentação mais convencional em filmes do gênero. Digo, no momento da apresentação das personagens, o filme o faz em paralelo com a apresentação da realidade do país, o nosso, que o filme retrata. A questão mora na forma como esse paralelo é criado, feito. Ele se dá de forma a retratar o país através de ações que se sobrepõem às personagens e revelam um pouco sobre elas. Ou seja, não são somente as atitudes das personagens que revelam sobre elas ou sobre a realidade do país. Embora me pareça sempre mais interessante quando as personagens guiam a história, me parece compreensível que em “Medida Provisória” seja diferente. A História trouxe-nos até aqui e embora ela seja sim feita através de atitudes tomadas e suas consequências, as tais não frequentemente dependem exclusivamente do desejo da maioria ou dos indivíduos.

O filme tem como honra inúmeras e grandiosas referências mais ou menos reconhecidas. Além do elenco, há Conceição Evaristo, obras de artistas como Alberto Pereira e a trilha sonora, além de Baco Exu do Blues, tem grandes cantoras como Elza Soares e Liniker. O roteiro por vezes, muitas, opta por fazer com que algo guie as personagens sem que seja elas mesmas. É algo sutil que também acontece nos momentos nos quais as personagens escolhem a música de Baco no bar ou da Elza em casa. Como elas chegaram à emoção que necessita da música? Não, não se trata da falha comum na qual a trilha impõe a emoção mais do que a própria cena. Mas sim o excesso de informações que embora demonstre a boa intenção de trazer essas digníssimas referências à obra e também fazer uma referência a tais artistas, deixa como resultado final um uso excessivo e nem sempre tão bem feito. Não raramente o silêncio é o melhor amigo do filme ou um som em pouca evidência. É num desses momentos que a personagem do Seu Jorge incorpora Fanon em “Pele Negras, Máscaras Brancas”.

Não são os pontos que citei anteriormente pontos capazes de causar algum dano ou perda a quem assiste ao filme. O que pode sim causar alguma perda ou dano, é a expectativa criada ou nutrida após ouvirmos tanto falar sobre o filme “DO” Lázaro. As frustrações são as suas surpresas belas e várias. Logo no início do filme, o sonho de uma conquista acordada com todo o país se esvai. A escuta ao nobre advogado é pouca, rara. Unanimidade então… Esqueça. Escassa. A médica apresenta sinais que, se lidos superficialmente, podem parecer de alienação. E aquele mesmo advogado tão pouco escutado/ouvido na sala vazia, ouve as poucas vozes com seus ecos retumbantes e poderosos com palavras contrárias a ele e tantas outras pessoas de “melanina acentuada”, como o filme sinaliza a relativização da Língua. Embora ela não necessariamente atenue a situação dos seres. No filme, o jornalista sábio e atento segue em vigília. Não há um bloco, mas sim completude na complexidade.

Complexidade essa que vence no filme. Porque não, o filme não trata de um paraíso ou tão somente de uma distopia. O que se vê é o país que temos nas costas e pela frente pintado de forma coerente consigo mesmo e digna. Não há saída, não há heroísmo. Há humanidade e, por ela, compaixão. O filme não nos traz respostas porque estas não existem. A pergunta é a obra que fica, se alastra e certamente guiará o público ao filme. O filme é uma resposta anterior ao “e se?” e mesmo assim não o responde. Cada um e uma de nós é capaz de acertar a desgraça que viria ou virá se essa pergunta desse origem a uma ordem e essa ordem desse origem a tanta desgraça. O filme afirma o que já sabemos sem que essa afirmação seja pobre ou óbvia. Seu silêncio, que é seu fundo, tão belamente ornado é tudo que o filme quer que seja dito. “Medida Provisória” transpõe a ludicidade sem deixar de dar seu recado. O filme não nos leva a crer que ficará tudo bem ou sofreremos da soberana tragédia. Não, sem que haja união e luta. Mesmo que de formas controvérsias, íntimas, esguias. Formas nunca solitárias, mas sempre únicas.

Os simbolismos presentes no filme são tantos… Ora gritantes como seu fim, ora ínfimos, como a notícia do fechamento da última livraria no Rio de Janeiro ou mesmo a cena da inspetora quebrando um berimbau. Há ainda símbolos mais subjetivos, como a vizinha (branca) que segue o trio de protagonistas (preto) por todo seu trajeto até que cheguem em casa onde, ao entrar, deixam despreocupados e sem notar, o portão aberto. Eles sequer sentem medo ou desconfiam. É através dos planos, silêncios e da trilha que sentimos alguma morbidez e perigo. O filme nos diz que aquilo pode sim ser assustador, embora a realidade na qual vivamos insista em enxergar perigo apenas em certos corpos. Outra sutileza é a presença da grande poetisa e atriz Elisa Lucinda através de uma frase geralmente dita por ela: “Cuidado com a bolsa! Com tantos brancos roubando em Brasília, nunca se sabe…” E tudo isso cabe e orna bem sem criar um antagonismo entre brancos (se é que existem) e pretos e seus descendentes (que são quase todos e todas). O filme, aliás, traz uma ideia de negociação entre pretos e aqueles brancos que de fato exercitam sua consciência através dos mais diversos atos. Os desalinhos são fruto de uma tragédia histórica que para ser devidamente superada exige um pacto soberano e total. Sem ele, será difícil. No entanto, seguiremos fazendo o possível.

Sobre o filme, o que mais pode ser dito é que ele não é óbvio e, por isso, pode parecer brincar com nossas expectativas ou mesmo deixar confusas nossas emoções. Não é fácil, difícil ou chato. Apenas requer uma atenção que não será dada à primeira vista. Lance duas ou mais vezes seu olhar sobre ele. Não para entender algo que confusamente te foi dito. Mas para debruçar seu olhar sobre esse universo que, embora direto, é de sensações e sutilezas, rico.


Filme: Medida Provisória
Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Emicida, Dona Diva, Aldri Anunciação
Direção: Lázaro Ramos
Roteiro: Lusa Silvestre, Lázaro Ramos, Aldri Anunciação
Produção: Brasil
Ano: 2022
Gênero: Comédia, Ação e Aventura, Drama
Sinopse: Em um futuro distópico, o governo brasileiro decreta uma medida provisória, em uma iniciativa de reparação pelo passado escravocrata, provocando uma reação no Congresso Nacional, que aprova uma medida que obriga os cidadãos negros a migrarem para a África na intenção de retornar a suas origens. Sua aprovação afeta diretamente a vida do casal formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), que mora com eles no mesmo apartamento. Vendo-se no centro do terror e separados por força das circunstâncias, o casal não sabe se conseguirá se reencontrar.  O longa é uma adaptação de “Namíbia, Não!”, peça de Aldri Anunciação que o diretor e ator Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: ELO Company
Streaming: Indisponível
Nota: 8,0

*Estreia dia 14 de abril nos cinemas*

Sobre o Autor

Share

One thought on “MEDIDA PROVISÓRIA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *