NOVE DIAS

NOVE DIAS

Você certamente já se deparou pelo menos uma vez com a frase, um tanto polêmica, “eu não pedi para nascer”. É bem verdade que nós tomamos consciência do que somos apenas depois de deixar o ventre de nossas mães e, por isso, ter qualquer poder de decisão sobre virmos ou não a esse mundo está longe de nossas mãos. Contudo, o drama Nove Dias, escrito e dirigido pelo brasileiro Edson Oda e protagonizado por Winston Duke e Zazie Beetz, subverte essa noção para entregar uma narrativa emocional e bastante reflexiva.

Assistindo outras vidas na TV

Apesar do tema, a trama de Nove Dias é bem simples e aposta muito mais nas interpretações do elenco do que em teorias e exposição para prender a audiência. Assim, acompanhamos Will (Winston Duke) em sua rotina diária de assistir TV. Mas logo percebemos que não é uma TV qualquer e sim vários monitores que transmitem em tempo real e em perspectiva de primeira pessoa o que vários seres humanos na Terra estão vivenciando dia após dia, do momento em que despertam até o momento em que vão dormir.

Do lado de cá da tela, assim como nós fazemos ao assistir a filmes e novelas, Will observa cada acontecimento que foge do banal e mantém anotações. Pode ser uma metalinguagem óbvia ou só exagero de minha parte, mas ele parece agir como quem tem uma reflexão nova ao ver cada personagem em cena.

Da mesma forma, apesar de serem várias TVs, o protagonista tem atenção especial dedicada a uma delas, afinal é normal que nos identifiquemos mais com personagem X do que com personagem Y. Mais do que isso, Will chega a dividir com seu colega de profissão Kyo (interpretado pelo sempre carismático Benedict Wong) acontecimentos específicos da vida daquela pessoa. Como quem espera o episódio final de temporada de uma série, eles se reúnem para assistir cheios de empolgação.

Nove dias de processo seletivo para nascer

Embora a atmosfera do filme seja carregada de uma dose de mistério, transmitido tanto pela ambientação em uma planície desértica com poucas casas simples como pela ausência de contato entre Will e outros personagens, o início é leve graças às interações do protagonista com Kyo.

No entanto, quando um dos humanos observados por Will morre de forma inesperada, o tom do protagonista e do filme como um todo faz uma curva fechada em direção ao drama. É aí que começa a jornada que dá nove à obra, com Will conduzindo um processo seletivo com “almas” que têm nove dias para provar a ele que são a mais preparada para ocupar a vaga aberta na Terra e “renascer”.

Voltando ao “eu não pedi para nascer”, em Nove Dias esses “candidatos” insistem, cada um a seu modo, que querem vir ao mundo. Tudo soa bem como a seleção para um trabalho. Enquanto assistem às telas e respondem a perguntas feitas por Will, essas “almas” vão mostrando a ele como reagiriam a situações do mundo real.

A princípio, o trabalho do protagonista deveria ser apenas eliminar candidatos já que só existe uma vaga disponível. Contudo, não demora para ficar evidente o desejo de Will de encontrar a “alma” mais capaz de suportar as dores e a pressão de estar vivo sem sofrer. Mais do que fazer seu trabalho, Will quer proteger aquele por quem se considera responsável.

Mesmo assim, o principal gargalo está no fato de que para as “almas” que forem eliminadas do processo seletivo a vida se encerra ali naquele lugar desértico, antes mesmo de sequer ter começado.

Quando a jornada é maior do que o destino

É impressionante pensar que esse é o primeiro longa-metragem de Oda. Premiado no Festival de Sundance de 2020 como melhor roteiro, Nove Dias promove uma experiência tão cheia de emoções que consigo tanto sentir meus olhos úmidos enquanto escrevo essa análise como extrair pequenas novas reflexões ao pensar em cada personagem.

Colocando de forma direta, é possível dizer que o filme narra a tarefa de Will de escolher um substituto para uma pessoa que morreu e deixou um lugar vago na Terra. Sendo assim, o destino, tanto do trabalho de Will como das “almas” que participam do processo seletivo, é a vida.

Porém, na medida em que percebemos as particularidades de cada candidato, a forma como eles encaram essa oportunidade, suas estratégias para conseguir a vaga e suas interações com Will, notamos que há muito mais nessa história do que a satisfação de saber quem vai ser o escolhido.

De fato, quando o primeiro candidato é efetivamente eliminado da disputa um novo mundo se abre diante de nós, com Will e Kyo mostrando um cuidado extremo para satisfazer o desejo final de uma “alma” que está prestes a deixar de existir depois de assistir pessoas vivendo suas vidas, mas sem jamais terem vivido.

É na interação entre Will e Emma (nome provisório dado pelo protagonista à “alma” interpretada por Zazie Beetz) que o valor da jornada é consolidado. Dentre todos os candidatos, ela é a única que realmente demonstra certo desprezo pelo processo seletivo em si. Ainda que não seja possível dizer que Emma não tem interesse em viver, é evidente que a rigidez das regras e do próprio Will não é algo que ela respeita.

Na verdade, enquanto Will se esforça para manter a distância do profissionalismo entre ele e seus candidatos, Emma está sempre pronta para driblar essa fachada para tentar expor a fragilidade de seu avaliador. Embora a relação entre Will e Emma seja o ponto alto da trama – com boas pitadas das cenas com Kyo -, a personagem de Beetz serve para perfurar o escudo do protagonista e mostrar que, para todas as “almas” prestes a ganharem vida ou deixarem de existir, cada momento dessa jornada “pré-vida” é a única coisa que realmente importa.

Isso também se reforça na descoberta da real motivação de Will para ter tanto cuidado com a preparação de seus candidatos. Embora hoje esteja naquele lugar cumprindo o papel de guardião de vidas na Terra, ele já viveu e experimentou na pele as dificuldades que isso representa. Suas experiências pessoais o fizeram construir uma fachada de dureza para proteger a si e aos demais de sentimentos que podem ser vistos como fraquezas, mas isso também priva Will de viver, seja na Terra ou naquele lugar tão efêmero.

Deslizes que não importam

É evidente que o filme de Oda tem deslizes. A opção por não apostar em grandes cenas expositivas é muito bem-vinda e dá leveza ao filme, deixando que o espectador se jogue no drama dos personagens sem interrupções de diálogos minuciosos explicando o que é aquele lugar, como cada coisa funciona, como outros avaliadores trabalham, de onde vieram aquelas “almas” etc.

Por outro lado, a falta de explicação de alguns desses detalhes também pode ser uma distração já que o espectador pode começar a se perguntar sobre um desses pontos. Ainda assim, é quando nos deixamos mergulhar nas emoções que Oda e o elenco estão colocando em cena que Nove Dias brilha.

No fim, mal notamos que quase duas horas de filme já se passaram e a decisão de Will sobre quem vai renascer nem importa mais. Enquanto pensamos se existe vida após a morte, aqueles personagens com uma “pré-vida” tão curta e, sob alguns pontos de vista, tão sem significado, percebem que não têm esse luxo e que precisam desfrutar de cada momento.

Ainda que o “carpe diem” já tenha sido explorando à exaustão, Oda nos lembra do valor da experiência, da jornada, e da importância de extrair o máximo – e o melhor – de cada relação que construímos. Assim como fazemos dia após dia no trabalho e na vida, ansiando pelo que ainda está por vir, Will completa seu objetivo para só então perceber que escolher uma “alma” para viver não era o mais importante e nem aquilo que o definia. Afinal, a felicidade é um caminho e não um destino.

Filme: Nine Days (Nove Dias)
Elenco: Winston Duke, Zazie Beetz, Benedict Wong, Bill Skarsgard, Tony Hale, David Rysdahl
Direção: Edson Oda
Roteiro: Edson Oda
Produção: Estados Unidos
Ano: 2020
Gênero: Drama, Fantasia
Sinopse: Will passa seus dias em um posto remoto assistindo em TVs, ao vivo e em primeira pessoa, enquanto pessoas vivem suas vidas até que uma delas morre e deixa livre uma vaga para uma nova vida na Terra. Logo, várias almas não nascidas se candidatam para passar pelos testes de Will e determinar se estão aptas para a vaga ou se serão eliminadas, deixando de existir para sempre. Contudo, Will deve lidar com seus próprios desafios existenciais ao se deparar com Emma, uma candidata de espírito livre diferente dos demais e que o força a encarar seu passado conturbado. Com uma força inesperada, ele descobre um novo e ousado caminho em sua própria vida.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Sony Pictures Classics
Streaming: Apple TV, Google Play e YouTube
Nota: 9,2

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