O ACONTECIMENTO  (L’Événement)

O ACONTECIMENTO (L’Événement)

Quisera a comunidade humanista que todo o globo captasse na suavidade do impalpável, aquilo que à sua realidade não cabe. Quisera o globo que essa vã tentativa fosse milagrosamente executada. Assim, talvez, surgiria uma provocadora obra de Arte. Surgiria, sem perdão pelo trocadilho, um acontecimento que nos é ofertado no filme em questão. O que de pior pode acontecer é o absoluto NADA. “O Acontecimento” ganha essa batalha. 

Não é possível captar a totalidade de uma experiência que não foi/é sua ou nossa. Há algo próximo da alteridade que quando gerada, se bem executada,  desperta algo. Algo indecifrável, indubitavelmente impalpável, conflituoso, supremo. O que se pode sentir ao assistir uma mulher precisar abortar na clandestinidade correndo risco de adoecer, morrer ou ser presa? Como um homem cisgênero deve existir no olho desse autoral furacão ao qual nos ensinam ser alheios? Eu diria que podemos começar por pensar em como senti-lo. Essa é parte importante da batalha não declarada. Mais do que há muito tempo, hoje repensamos algumas posições  muito estáveis na sociedade ocidental e por isso misógina, patriarcal. Essa busca pelo respeito a novas formas e posturas, permeiam muitos produtos culturais contemporâneos. 

“O Acontecimento” acompanha a jornada de uma jovem que engravida e terá seu fim se vir a ser mãe solteira numa sociedade que a julga se for e se não for. Essa última situação, sendo devido a um aborto, levaria à sua prisão. O roteiro de Anne Berest e Audrey Diwan, Audrey que também dirige o filme, percebe o frágil lugar da representação. O filme vai além: cuida da narrativa. O foco é na Anne e na sociedade parisiense de 1963, quando o aborto ainda era ilegal por lá. Ou seja, no Ocidente uma mulher entre algozes e aliadas tenta exercer seu direito de bem viver. Claro que esse é um tema que muitos filmes abordam e falham ao cair num discurso liberal e no formato “contra-clichê” que já se tornou um padrão quase estadunidense de discurso que aparentemente abarca a autonomia feminina baseada na independência financeira de mulheres brancas, magras, ricas, belas enfim.  Ou seja, estimulam o desejo por algo inatingível e que não desperta um real conflito em prol de uma também real transformação das posições que nós homens em conjunto com a sociedade machista e patriarcal impomos às mulheres.  “O Acontecimento” nos guia de forma suavemente dolorosa, esguia. É muito bem construído o mundo do imprevisível (ao menos para um homem cisgênero como eu). Não há nada que não possa piorar. Mas tudo isso é apresentado de forma outra, repito: inesperada. O filme cruza várias esquinas sem se chocar em nenhuma com o monstro da banalização. É assim que ele nos acha, nos pega. 

Além da sua trilha sonora soluçante que palpita por algo que nunca será entregue assinada por  Evgueni Galperine e Sacha Galperine, há todo um conjunto de cenas que tornam a racionalidade dispensável.  Anne, personagem principal e impressionantemente bem encarnada por Anamaria Vartolomei, tem uma consciência que certas pessoas e grupos, por sobrevivência, precisam ter. Precisam dar nó em pingo d’água. É a real resiliência fruto da violência.  Esse é um fator positivo para a imersão gerada. Nada que há no filme é corriqueiramente exposto. As cenas são perturbadoras. E perturbar também é uma forma de habitar algo. Um ato urgente, necessário. Há pouco a Suprema Corte dos EUA durante um governo aparentemente ao centro ou progressista, violentou o direito à saúde e decisão das mulheres ao realizar o aborto. No país que representa a Liberdade concretizada em uma nação.  O que posso dizer do nosso com seu golpe de estado armado e também aos quatro ventos cantarolado? 

Como toda evidência é fruto de uma ideologia, vale reafirmar o que para alguns é evidente: nenhuma mulher aborta porque julga bom. Sim porque julga necessário. A sociedade necessita imediatamente assegurar o direito à saúde, à  escolha e à segurança às mulheres e demais pessoas que possuam útero. Por fim, embora tanto tenha dito, não julgo ser um filme que necessite do dispêndio de  palavras. O filme ensina-nos a força da ação.


Filme: O Acontecimento (L’Événement)
Elenco: Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein, Luàna Bajrami,
Louise Orry-Diquéro, Louise Chevillotte, Pio Marmaï
Direção: Audrey Diwan
Roteiro: Audrey Diwan, Marcia Romano, Anne Berest e Alice Girard 
Produção: França
Ano: 2021
Gênero: Drama
Sinopse: O Acontecimento é adaptado do romance de Annie Ernaux, e se passa numa França de 1963, ainda quando o aborto era ilegal no país. Anne é uma estudante com um futuro promissor, e quando descobre que está grávida, ela imediatamente insiste na interrupção, mas seu médico avisa sobre as leis implacáveis ​​contra procurar ou ajudar abortos, e suas tentativas de chegar a seus amigos mais próximos são rejeitadas. À medida que as semanas passam, sem apoio ou acesso, uma Anne cada vez mais desesperada persiste inabalavelmente em buscar qualquer meio possível de interromper a gravidez na esperança de recuperar seu futuro. O longa detalha direta e graficamente não apenas os perigos e indignidades da busca angustiante de Anne, mas também como a indiferença ao redor aumenta sua situação, imergindo-nos na certeza de sua personagem de que o fracasso em interromper esta gravidez certamente seria o fim de sua vida também.
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Zeta Filmes
Streaming: Indisponível. Ainda nos cinemas.
Nota: 9,0

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