Clarice Lispector no Cinema
Se Marcela Lordy soubesse que passaríamos por 2 anos e meio com uma solidão e melancolia coletivas, o filme não bateria tanto quanto bate agora em 2022. Ele provavelmente traria uma afetação na melancolia representada que pareceria plástica. Ao invés disso, recebemos aqui uma obra primorosa que trata a melancolia com a maturidade que Clarice Lispector merece.
“O Livro dos Prazeres” é uma adaptação livre da obra “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector, publicada em 1969. Tanto o livro quanto o filme acompanham Lóri, uma professora que se muda do interior para o Rio de Janeiro para se sentir mais livre em sua vida. Em meio às difíceis relações familiares e sua própria dificuldade em construir amizades e amores, Lóri vive uma vida de solidão e melancolia, de desejos e afastamentos. Sua vida no Rio de Janeiro é permeada pela presença inconstante de Ulisses, um professor de filosofia que a desafia (e a diminui também).
Atuações memoráveis
Embora a premissa do filme e do livro sejam a mesma, a história foi trazida para 2020 em sua forma cinematográfica. Lóri é interpretada primorosamente por Simone Spoladore. Ela consegue transmitir os temas de solidão, melancolia, desejo, desafio e superação de uma forma tão natural. Estes são temas que por vezes podem cair em um lugar comum de desespero barato. Spoladore, sob a direção de Lordy, não cai nunca nesse clichê. Ela mostra que é possível torcer por um protagonista mesmo vendo seus defeitos de forma tão crua. Não precisamos vê-la chorar e se descabelar para sentirmos com ela, e isso é a beleza dessa direção.
Compondo também o elenco está o argentino Javier Drolas como Ulisses, uma espécie de relação inatingível para Lóri que serve como catalisadora para a evolução da personagem. Ulisses é um personagem detestável que Drolas consegue tornar de alguma forma charmoso. Há uma questão da barreira linguística em alguns momentos que acabam por prejudicar esse charme que ele imbui ao papel. Contudo, Ulisses poderia ser péssimo nas mãos de outro ator. Para o filme funcionar, temos que sentir esse interesse que Lóri sente por ele, e Drolas entrega isso muito bem.
Compõem o resto do elenco como personagens secundários Gabriel Stauffer como o simpático Carlos, colega professor na escola onde Lóri trabalha e outro interesse amoroso, Martha Nowill como Luciane, uma amiga e mãe de um aluno, e Felipe Rocha, como Davi, irmão de Lóri. Stauffer e Nowill conseguem criar personagens com profundidade nas poucas cenas em que estão. Carlos tem um bom coração mas é um tanto sem-noção sobre Lóri. Por outro lado, Luciane vê exatamente quem ela é e atua com um certo “amor duro” mas necessário.
Felipe Rocha se sai bem como Davi, mas acaba sofrendo um pouco com a mão pesada na escrita um pouco exagerada do personagem, único ponto baixo do roteiro. A relação entre Lóri e Davi foi a que pareceu mais desconexa, e, dada a importância que a solidão tem para Lóri, e o papel do afastamento da família nisso, teria sido interessante ver essa dinâmica um pouco mais aprofundada. No entanto, os abraços que Davi dava em Lóri foram muito marcantes sobre o quanto ele se importa com a irmã, e nisso todo o crédito vai para Lordy e os atores.
Melancolia a granel
O mais marcante desse filme foi, para mim, como Lordy retratou a melancolia. Esta por vezes é um tanto romantizada (e ninguém demonstrou isso tão bem quanto a série Crazy Ex-Girlfriend, diga-se de passagem). Aqui, por mais que possamos sentir empatia pela solidão e melancolia de Lóri, o filme não nos faz querer passar por isso também. Nas mãos de Lordy, isso não é bonito, mas parece real. Sem entrar em rótulos, o filme acaba por demonstrar muito bem como alguém que sofre de depressão e ansiedade pode se sentir. E como é difícil falar sobre isso e se abrir para o próximo.
O uso esporádico de um efeito retrô na câmera e os ventos sessentistas que passam pelo estilo de Lóri não passam batido. Afinal, o cinema nos anos 60, principalmente através do cinema francês, foi o grande responsável pela romantização da melancolia. Em “Livro dos Prazeres”, esses sopros evocam a época na qual o livro foi escrito e lançado. Fazem o filme conversar com uma época e um movimento específico ao mesmo tempo em que criam um contraste com a corrente da época, o que o próprio livro já faz também, de certa forma.
Uma câmera gentil
Por fim, esta resenha não estaria completa sem uma salva de palmas virtual para o trabalho incrível de cinematografia deste filme. Nas mãos de Mauro Pinheiro Jr, a câmera traz um olhar muito gentil ao silêncio da vida de Lóri, com ângulos e escolhas interessantíssimas, e um uso criativo do que o set oferecia. Posso afirmar com alguma segurança que uma das cenas que mais vai marcar pessoas que assistirem ao filme são as 6 (ou mais?) Lóris no espelho, justamente pelas escolhas inventivas para esse momento. Você que assistir o filme saberá exatamente do que estou falando. O todo oferece uma cinematografia bela que evita os clichês do Rio de Janeiro e traz muita criatividade.
“O Livro dos Prazeres” estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 22 de setembro, e digo que você realmente deveria assisti-lo. Além de prestigiar a produção nacional, o filme é um estudo lindo sobre a melancolia.
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Filme: O Livro dos Prazeres Elenco: Simone Spoladore, Javier Drolas Direção: Marcela Lordy Roteiro: Josefina Trotta e Marcela Lordy Produção: Brasil, Argentina Ano: 2020 Gênero: Drama, Romance Sinopse: Professora do ensino fundamental, melancólica e reservada, Lóri vive só. Uma rotina monótona entre as tarefas da escola e relacionamentos furtivos, que evidenciam sua dificuldade em construir relações com afeto. Num acaso, ela conhece Ulisses, um reconhecido professor de filosofia, argentino egocêntrico e provocador, mas que ainda não entendeu nada sobre as mulheres. É com ele que Lóri aprende a amar enfrentando sua própria solidão. (do site da Vitrine Filmes). Classificação: 16 anos Distribuidor: Vitrine Filmes Streaming: Não Nota: 9,0 *Estreia dia 22 de setembro de 2022 nos cinemas* |
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