CRÍTICA – PASSAGENS

CRÍTICA – PASSAGENS

Existe hoje uma abertura maior para se falar a respeito das diferentes formas de se relacionar. O casamento  monogâmico entre um homem e uma mulher — ou entre dois gays ou duas lésbicas ou todas as outras variações possíveis — tem sido amplamente discutido, questionado e até demonizado. Como alternativa, dentre outras, há o casamento aberto. Nele, no arranjo mais comum, duas pessoas estão juntas, mas podem livremente se relacionar com outras, quaisquer outras. A ideia soa interessante. No campo da imaginação e do desejo, o casamento sem as amarras da tradição pode trazer diversidade, plenitude e felicidade para todos os envolvidos. Na prática, entretanto, pode não ser bem assim, as coisas podem não funcionar direito — pois entra em cena o bom e velho ciúme — e todo o arranjo desandar facilmente. É disso que trata o excelente “Passagens”. É ficção, mas poderia muito bem ser um documentário sobre uma forma alternativa de se relacionar, de se estar num casamento.

A cena de abertura de “Passagens” é interessante porque nos revela a profissão de Tomas (Rogowski): ele é diretor de cinema. Um diretor perfeccionista, aliás, como mostra a cena. O que também é um modo de dizer que ele é um sujeito naturalmente egocêntrico, um pouco mais do que a média das pessoas comuns, e que não reivindica para si apenas o centro das atenções de seu set de filmagem, ele o faz para todas as dimensões da vida, principalmente a afetiva. O diretor quer sempre ser o centro dos afetos das pessoas próximas. Um narcisista, portanto.

Tomas vive com Martin (Whishaw). E como todo casal que está junto faz algum tempo, há sempre algum estresse, alguma rusga mal resolvida do dia a dia. O que é absolutamente normal. Faz parte da vida a dois. Mas também é sempre uma porta aberta (ou uma fresta, não importa) para se deixar seduzir por alguma tentação oportunista do mundo exterior. E é o que acaba acontecendo. Tomas conhece a bela Agathe (Exarchopoulos) e os dois se apaixonam. Tudo muito intenso e muito rápido.

“Passagens” é um filme de ritmo relativamente lento e sem peripécias narrativas. Ele observa até com certa graciosidade o lento desenrolar da confusão na qual Tomas se envolveu, arrastando o pobre Martin consigo. O humor sutil, salpicado aqui e acolá, é ponto forte do longa-metragem, pois ajuda a desanuviar a atmosfera um tanto densa de sofrimento e angústia causada pela falta de maturidade de Tomas, que não é capaz de controlar seus próprios desejos e impulsos. É sempre bom lembrar que nossa liberdade de ser e de fazer o que bem entendermos termina no direito de liberdade das pessoas que amamos. Um equilíbrio fino difícil de construir e de manter. A liberdade irrestrita é uma ilusão. Talvez só alcançada com a morte.

A tradição e o conservadorismo são vistos comumente como algo negativo e que devem ser sempre combatidos ou superados. Prefiro pensar, entretanto, que se algo dura há bastante tempo e que resiste até os dias de hoje — como é o caso do casamento monogâmico — é porque foi testado ao longo dos anos por gerações e gerações de pessoas. Pode não ser a melhor maneira de se viver a vida, longe disso, mas seguramente é a menos pior — isso quando existe respeito profundo um pelo outro, claro.

De certa forma, “Passagens”, ao mostrar o desarranjo do que é visto como novidade, como uma amostra inequívoca de progressismo das relações afetivas contemporâneas, acaba defendendo, não sei se intencionalmente, relações mais conservadoras e estáveis ao longo do tempo. Para mim, é um filme deliciosamente conservador. E uma bela provocação.


Filme: Passagens
Elenco: Franz Rogowski, Ben Whishaw, Adèle Exarchopoulos
Direção: Ira Sachs
Roteiro: Ira Sachs, Maurício Zacharias
Produção: França
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: O casamento de Tomas e Martin entra em crise quando Tomas começa impulsivamente um caso apaixonado com a jovem professora Agathe. Mas quando Martin também começa um caso, Tomas deve enfrentar decisões de vida que ele pode não estar preparado ou disposto a enfrentar.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: O2 Play
Streaming: MUBI
Nota: 8,5

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