Filmes sobre infância costumam carregar, quase que unanimemente em sua essência uma aura de nostalgia e fabulações fantasiosas, onde o fantástico e inconcebível na realidade se fazem presentes de forma banal e comum, fluindo como dentro do que é considerado “normal”. Essa é a magia do universo das crianças, onde tudo é possível e não se tem regras quanto a isso. Em Petite Maman (2021), Céline Sciamma explora esse universo de fantasia em uma fábula infantil sobre o encontro no bosque de duas garotinhas muito parecidas uma com a outra e a amizade que se forma entre as duas pequenas.
Sem muitas introduções, sabemos logo de início que uma senhora faleceu. Esta senhora por sua vez é a avó de Nelly, uma das protagonistas do filme. Passado o infeliz acontecimento, Nelly e sua mãe voltam à casa de sua avó, que possui um bosque “infinito” onde a mãe da protagonista havia, quando criança, construído uma cabana para si, em um local que não revisitava há anos.
Essa cabana é o lugar onde se centra grande parte da magia desta história. Ao visitar o lugar onde sua mãe brincava quando criança, Nelly passa a “reformar” a cabana com galhos e folhas, mas se surpreende ao encontrar Marion, uma garota da mesma idade que já estava construindo ali antes. O ar nostálgico criado pelas brincadeiras das duas crianças e a interação superfluida entre elas é um grande acerto. O fato de as duas pequenas serem irmãs gêmeas na realidade agrega ainda mais nessa produção.
Uma das partes que mais agrada em Petite Maman é o fato de o filme ser focado em duas crianças. A narrativa se passa quase que inteiramente ao redor das duas meninas e, ainda que pessoas adultas apareçam em cena, o centro das ações e diálogos se dá entre Nelly (Joséphine Sanz) e Marion (Gabrielle Sanz). Diálogos esses preenchidos de profundidade e pequenas lições. A personagem de Nelly é cheia de atitude e a sua naturalidade ao atuar combinada ao seu carisma a levam a entregar um ótimo trabalho, mesmo que com tão pouca idade.
Ainda que seja um filme sobre luto, maternidade e arrependimentos, Petite Maman consegue ser doce e agradável de se assistir. Tendo apenas 72 minutos, ao final sentimos quase de imediato saudade das personagens principais da narrativa. Algumas cenas são tão carregadas de sensibilidade que podem levar um espectador mais sensível às lágrimas. Particularmente, um de meus momentos favoritos, que trouxe um sorriso agridoce foi em um dos diálogos entre as duas meninas onde uma diz à outra “você não tem nada a ver com a minha tristeza”. Assistir a uma frase como essa sendo falada por uma criança foi algo comovente que me deixou com olhos marejados pelo resto do filme.
O que mais encanta na produção de Sciamma, que anteriormente entregou uma narrativa bastante diferente com Retrato de uma jovem em chamas (2019) é a simplicidade do roteiro de Petite Maman. Não se tem reviravoltas e nem mistérios e a narrativa flui naturalmente. Assim como em seu trabalho mais antigo, Tomboy (2011), vemos o simples ser exposto na tela, numa história que nos convida à reflexão de nossas próprias histórias. Na experiência de Nelly com o passado e com seu presente, misturam-se as histórias de sua mãe e avó, e na pequena Marion encontram-se algumas das respostas aos questionamentos da protagonista.
Dentro do pequeno universo criado pela diretora, onde tempo e espaço não funcionam como na realidade, é possível criar e estreitar laços com o passado. Na fantasia de uma criança que não pôde se despedir da avó, encontrá-la em outra realidade é realizar o desejo mais recente dessa pequena pessoa. Poder se despedir de alguém que já partiu é um privilégio, daqueles que somente a ficção é capaz de proporcionar, passar um pouco mais de tempo com esse alguém também. Como em um espelho, Nelly se vê em Marion e vice-versa. Conhecer uma à outra é uma experiência absurda e ainda assim fantástica, e poder compartilhar suas histórias é um presente que somente a fantasia pode proporcionar.
Não há vilões nem intrigas ou disputas por dinheiro e poder em Petite Maman, a realidade já é dura demais para infectar o mundo que Nelly desbrava no bosque da casa de sua avó. Sua amizade com Marion, apesar de durar apenas por poucos dias é suficiente para mudar sua forma de ver o mundo. As cenas finais são cheias de emoção, onde um simples “au revoir” carrega tanto significado que somente essas palavras dizem tudo o que se quis dizer desde o início.
Petite Maman é um filme de conforto, mas não se resume somente a isso. Ainda que seja uma experiência agradável, ele traz consigo reflexões sobre as angústias e inseguranças, bem como a passagem do luto na perspectiva e experiência de uma criança. Ao criar uma saída esperançosa para essas inquietações, Sciamma transforma seu filme em um abraço ao espectador, que com suas próprias inquietações da vida real merece aproveitar.
Filme: Pequena Mamãe (Petite Maman) Elenco: Joséphine Sanz, Gabrielle Sanz, Nina Meurisse, Margot Abascal Direção: Céline Sciamma Roteiro: Céline Sciamma Produção: França Ano: 2021 Gênero: Drama, Fantasia Sinopse: Nelly, de oito anos, acaba de perder sua amada avó e está ajudando seus pais a limpar a casa de sua mãe. Ela explora a casa e a floresta circundante onde sua mãe costumava brincar e onde ela construiu a casa da árvore sobre a qual Nelly tanto ouviu falar. Um dia sua mãe vai embora de repente. É quando Nelly conhece uma garota da sua idade na floresta, construindo uma casa na árvore. Classificação: 14 anos Distribuidor: Diamond Filmes Streaming: Prime Video Nota: 8,5 |