PUREZA

PUREZA

Existem muitas fontes para saciar a sede de interpretações do momento que estamos vivendo. De certo, algo tão histórico quanto a queda de um império. Quiçá o Asteca, sendo nós os habitantes de Tenochtitlán sacrificados em nome do deus Money. São, aliás, vários momentos que resultam em algo, fragmentos disso que podemos chamar de momento atual. 

“Pureza” é um filme que brinca um pouco com isso. A marca de época quase não se evidencia, exceto em alguns momentos específicos. A glória da sétima arte, é a nossa tragédia. E essa afirmação também dá conta das soluções/manobras capazes de encurtar três anos em um e esse um em cem minutos. A “confusão” que Pureza faz com o momento atual, é uma armadilha do seu roteiro que  apresenta a questão dos trabalhadores em situação análoga à escravidão como sendo algo próximo aos dias atuais.  Mas claro que isso se deve ao racismo estrutural, ao capitalismo e à incompetência/ desinteresse das autoridades públicas. Essa breve confusão é a confissão de um fracasso político e governamental que se instalou sobretudo nos últimos nove anos. Antes, a sensação de segurança (inclusive alimentar) era nítida, haviam até direitos trabalhistas, pleno emprego. E também por isso muito menos pessoas eram colocadas em situação de risco. A insegurança nos leva ao medo. O medo, sabemos, ativa em nós dois mecanismos: a fuga ou o embate. No entanto, a fome ou mesmo sua iminência, só permite uma. E não é o medo. Certamente não há direito à fuga.  É esse o retrato que “Pureza” captura. É essa a glória do filme e nosso maior cortejo de horrores.   

Se o tempo é Rei, nem sempre ele é amigo. Infelizmente, não é do roteiro nem da montagem desse filme que constrói seu sucesso a partir de um fracasso. Sim, o sucesso de se adequar ao ritmo mais acelerado do público já viciado no celular com armadilhas como TikTok, vem acompanhado do fracasso de correr para contar uma história assim pulando etapas antes  importantes para uma melhor imersão. E a imersão é capturar e se deixar ser capturado por sinalizações, efeitos, partes da narrativa em si. Os japoneses têm o conceito de MA, uma palavra e ideograma que significa também “o espaço entre as estruturas”, o “respiro”. Algo que faz-se necessário no Cinema, bem como em todas as manifestações artísticas. Não posso ser mal intencionado, tolo ou ingênuo o suficiente para afirmar que seu roteiro e montagem assim são tão somente por uma questão de interesse mercadológico. Embora isso também aconteça, não é possível anular a busca de uma equipe de artistas de “ir aonde o povo está”. Nada é tão simples ou condenável. São sim fatos tão simples quanto complexos. 

É fato também que esse desejo resulta em escolhas e essas escolhas têm consequências que dão o tom da coisa. Com base no uso do recurso do tempo desenfreado, a direção impõe um ritmo e tom à atuação, por exemplo. Ao parecer fugir de algo próximo ao filme “Lavoura Arcaica”, “Pureza” desequilibra e estabelece  um tom de frequente elevação. Estando acostumados e acostumadas com tal elevação vir como culminação de uma série de acúmulos mais ou menos exibidos em cena, é possível que o público estranhe  que tenhamos que acreditar na desgraça como suficiente para tamanha alteração. São poucos momentos no filme os quais algo não está por vir.  E mais raros são os momentos em que há sussurros, pausas, intimidade. Podemos até pensar em como esses sussurros, esses momentos de mergulho mo pessoal ou interpessoal teriam o papel oposto ao da escravização. Isto é, humanizaria.  Porque enxergar e retratar tão somente como mãe de ou pessoa em situação análoga à escravidão, não necessariamente é humanizar. Humanizar é complexificar. E, analisando vários aspectos, não posso afirmar que “Pureza” nos entrega algo assim. 

Os demais departamentos têm frutos interessantes. O som é muito bem concentrado em uma boa ambientação, embora não faça muito mais que isso e talvez não fosse mesmo necessário. A fotografia tem momentos específicos muito interessantes e até alguns singelos experimentos, como a mudança de tonalidade quase repentina em alguns planos detalhes. A direção de arte tecnicamente definida como “invisível” é primorosa. Embora não hesite em vestir uma calça Levi´s numa personagem paupérrima. 

Pureza deve alcançar seu numérico objetivo. Além de ser feito também para isso e tomar decisões sugestivas, o país também está desfeito política e economicamente para revivê-lo. Vide os casos de empregadas domésticas resgatadas em situações análogas à escravidão apenas no ano de 2022. Um já seria muito e intolerável, revoltante e fato nacionalmente desolador. Um fracasso civilizatório. Sendo mais de um, como posso classificar-nos? Nada basta. É por isso que existe a Arte. Nesse sentido, há um ganho em “Pureza”.


Filme: Pureza
Elenco: Dira Paes, Matheus Abreu, Flávio Bauraqui, Mariana Nunes, Sérgio Sartório, Claudio Barros, Alberto Silva Neto, Jefferson Mendes, Guto Galvão, Gregório Benevides
Direção: Renato Barbieri
Roteiro: Renato Barbieri, Marcus Ligocki Jr.
Produção: Brasil
Ano: 2019
Gênero: Drama, Biografia
Sinopse: No interior do Maranhão, Dona Pureza trabalha fabricando tijolos ao lado de seu filho Abel. Em busca de uma vida melhor, o rapaz decide tentar a sorte nos garimpos da Amazônia. Quando fica meses sem receber notícias do filho, Pureza inicia uma jornada incansável para descobrir o seu paradeiro.
Classificação: 14 anos
Distribuidor: Downtown Filmes, Paris Filmes
Streaming: Indisponível
Nota: 6,5

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