QUEM TEM MEDO?

QUEM TEM MEDO?

É muito importante pensar na importância que o nosso corpo tem para exercitarmos direitos e deveres como cidadãos que engendram, ou tentam, um ideal de nação que acolhe corpos diferentes dos nossos e que, também por serem fisicamente diferentes, tragam em suas mentes, ideias, memórias e anseios possivelmente distintos ou mesmos divergentes dos nossos. Essa perspectiva pode causar horror a quem acredita na existência de algum valor absoluto e ache-se no direito de, se dotado de poder, transferir ou fazer repercutir tal desespero e horror em outros corpos que em breve se tornarão vítimas, embora não só, de alguma censura ou ablação. Chico Buarque muito bem canta e resume: “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”. 

“Quem tem medo?” é um filme  dirigido, roteirizado e montado por Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr que retrata alguns casos de artistas que sofreram censura durante o governo do atual presidente do Brasil. Sendo a Arte fruto da e inerente à Humanidade, é através dela que se revelam os mais íntimos e profundos retratos de uma época, nação e/ou grupo. Embora a Arte também represente aquilo produzindo pela Humanidade, conscientemente ou não, não cabe a ela apenas o lugar de representação datada. Isto é, através dela há o grito de um prenúncio tanto ou mais poderoso que todos os outros. “Quem tem medo?” embora não insista nesse ponto por se concentrar mais na experiência de artistas, pode gerar essa reflexão. Em quem, é um outro ponto. 

No documentário, é abordada também  a famigerada performance ocorrida na mostra “Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira” apresentada no Santander Cultural, em Porto Alegre pelo artista internacionalmente reconhecido Wagner Schwartz. Nela o artista buscava reproduzir com o seu corpo a obra viva Bicho da artista também internacionalmente reconhecida Lygia Clark na qual o objeto era das mais diversas formas transformado através do contato com o público. 

Além do fluxo da História da Arte que levava Lygia a pensar em como ultrapassar os limites das superfícies, haviam também razões políticas importantes que levaram a classe artística a reconhecerem o corpo como objeto de contemplação e aplauso. Quase que para impedir o sequestro, a tortura, a morte ou a prisão dos corpos por meio dos aparatos de repressão da ditadura cívico-militar que devorou o Brasil no início da década de sessenta. A partir desse momento, aliás, com o recrudescimento, o golpe dentro do golpe, a ideia de muitos artistas era encontrar formas de colocar o público em contato mais direto com a obra, inseri-lo na obra. Não apenas seus olhos a tocariam e a contemplariam mais ou menos distantes. A ideia era que o corpo também fosse obra. 

Existem alguns paralelos entre o momento histórico no qual a Lygia Clark criou a obra Bicho e o momento histórico recente no qual o Wagner  Schwartz reproduz com seu corpo a tal obra. Embora, é claro, o contexto sócio-político  seja outro, é possível encontrar  inegáveis pontos de semelhança entre o estado atual da democracia brasileira e a já citada ditadura cívico-militar que iniciou-se na década de 60. Não no modelo político, pois este é inadmissível num país como o Brasil no século XXI. Mas sim se pensarmos nas respostas reacionárias que tentam, e por vezes conseguem, abalar ou mesmo inibir movimentos, sejam eles artísticos, intelectuais, políticos ou sociais. 

No entanto, o curioso é que por mais interessante, expansivo e amplo que esse aspecto seja, ele sequer é tangenciado no filme. “Quem tem medo?” não cria esse ou qualquer outro paralelo capaz de melhor situar historicamente quem o assiste. Há sim informações relevantes que o contextualizam, essas, porém, fecham-se em si. Por exemplo, o filme mostra a censura específica sofrida pela artista Renata Carvalho ao encenar a peça “Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, escrita pela dramaturga escocesa Jo Clifford. No entanto, não se debruça sobre o porquê de uma censura especialmente violenta se dirigir justamente a um texto escrito e encenado por mulheres trans. Por que o corpo trans é o melhor e pior símbolo desse e de tantos outros cerceios? Isso não está explícito. É evidente que não faz-se necessário quando se dialoga com um grupo mais intelectualizado e/ou da classe artística. Não digo que esse é um ponto tão somente negativo, mas sim que “Quem tem medo?” tem um público mais restrito ou restringido devido a escolhas e gestos comuns, quando não automáticos, a certo grupo que, por sua vez, parece precisar dialogar melhor se a intenção for  levar a compreensão e revolta a acometer outras pessoas que não fazem parte do mesmo grupo. O filme também perde a oportunidade de, através da exibição das demais áreas da sociedade violentadas, mostrar os reais objetivos desse(s) grupo(s) reacionário(s). Bem como também sinalizar as repercussões outras e várias que tais censuras têm na sociedade. Sejam essas repercussões sinais, símbolos ou não. Aliás, quem são os/as artistas mais prejudicadas com a censura? Justamente aqueles e aquelas que necessitam do apoio público para garantir e exibir os frutos do seu trabalho. Precisam ao apoio do Estado brasileiro, como muitas e muitos brasileiros. 

“Quem tem medo?” tem uma edição fluida e envolvente. No filme, o tom sóbrio é interessante e não pesa pois, embora traga o relato de uma violência (a censura), o filme consegue também trazer-nos uma sensação de vitória porque não nos destruíram. Ao contrário, ao que parece, esses instrumentos e seus operadores é que, em breve, serão destruídos.


Filme: Quem tem medo?
Elenco:  Wagner Schwartz, Renata Carvalho, Maikon K, José Neto Barbosa, “Aquela Cia de Teatro” e a companhia “A Motosserra Perfumada”
Direção: Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr
Roteiro: Dellani Lima, Henrique Zanoni e Ricardo Alves Jr
Produção: Brasil
Ano: 2022
Gênero: Documentário
Sinopse: A ascensão da extrema direita no Brasil a partir da perspectiva de artistas que tiveram obras censuradas.
Classificação: Livre
Distribuidor: Multiverso Produções
Streaming: Indisponível
Nota: 7,8

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