Superlativo. Essa é uma ótima palavra para definir RRR: Revolta, Rebelião, Revolução (RRR: Rise Roar Revolt), lançamento mais recente do diretor S. S. Rajamouli, que se apropria de duas figuras lendárias do movimento revolucionário e de Independência da Índia, Alluri Sitarama Raju (Ram Charan) e Komaram Bheem (N.T. Rama Rao Jr.).
Mais do que isso, o filme, que soma a terceira maior bilheteria da história do País com mais de 1,3 bilhão de habitantes, imagina como um encontro entre os dois personagens poderia impactar as vidas dos habitantes da Nova Délhi da década de 1920 e iniciar uma convulsão social. A obra foi lançada em 2022 depois de passar por alguns adiamentos motivados especialmente pela pandemia do novo coronavírus.
Cinema é espetáculo
Para todos os efeitos, talvez seja muito vago falar apenas sobre quão grandioso o filme parece ser ao espectador. Olhando para o cinema indiano, é impossível negar que o ocidente se acostumou a rir da estética dessas produções por conta de choques culturais. Afinal, são homens saltando sobre muralhas, arremessando seus inimigos no ar com as mãos nuas, acertando tiros impraticáveis entre vários outros feitos incríveis.
Não fosse o bastante, esses deuses em pele humana ainda têm tempo tanto para dramas da vida cotidiana como para desfilar sensibilidade em cenas musicais onde todos em cena acabam se revelando exímios dançarinos. Esses elementos são comuns às produções do que ficou conhecido como Bollywood, afinal, os cineastas indianos não abrem mão da visão de que filmes são espetáculos. Assim, quem vai ao cinema espera o pacote completo de emoções e Bollywood entrega. Em RRR não é diferente… Mas é!
Do fato ao faz de conta
Vale ressaltar que RRR é uma obra de Tollywood, um novo polo cinematográfico do país de produções em idioma telugu. Porém, o que torna o filme tão notável não é apenas sua inspiração em acontecimentos reais, que fazem parte da construção da consciência de classe indiana. Isso porque, embora muito do que se sabe sobre os personagens principais da trama faça parte de relatos orais e do folclore do País, Raju e Bheem nunca se conheceram e participaram de movimentos revolucionários distintos.
Já no filme, a história dos dois se entrelaça depois que uma jovem Gond é comprada/sequestrada pelos mandatários ingleses. De um lado, Bheem parte em uma jornada para resgatar a garota enquanto Raju, a serviço da polícia e sob ordens dos colonizadores, é encarregado de encontrar o líder de um perigoso movimento popular revolucionário. É a partir desses eventos que, aos poucos, seremos apresentados às motivações e conflitos de cada um dos heróis, mergulhando na vida deles e na relação que constroem.
Contudo, o objetivo de RRR não é fazer um drama histórico fiel à realidade, mas sim um épico de ação capaz de inflamar o espírito de quem assiste. Vale ressaltar que o filme tem pouco mais de três horas de duração, sendo os primeiros 40 minutos uma grande introdução.
É nela que somos apresentados aos protagonistas. De um lado, temos Raju, que apesar da fachada de ordem militar, representa o elemento do fogo, enfrentando sozinho e com apenas um bastão de madeira uma multidão raivosa para cumprir uma ordem superior do exército inglês. Do outro, temos Bheem, que mesmo sendo a manifestação do suave elemento da água, é um agente da selvageria que enfrenta um tigre no meio da selva quase nu.
Antes de nos atirar na trama de como essas duas lendas irão desafiar a exploração do poder colonialista britânico, RRR nos faz perceber tanto em canções como em cenas que Raju e Bheem estão em lados opostos e que um encontro entre eles tende a terminar de forma trágica. Não importa, sem que saibam, a devoção que cada um deles tem a seu povo vai uni-los e nós veremos como eles se tornam inseparáveis.
Aula de narrativa
Diferente de como foi para os indianos, experiência de RRR para os brasileiros é vivida em casa, no conforto do serviço de streaming. Assim como pode ter sido o caso de O Irlandês (The Irishman), filme da Netflix que também tem mais de três horas de duração, é possível assistir aos poucos. De fato, as exibições na Índia ainda remontam ao passado do cinema, quando intervalos no meio das sessões ou entre atos para ir à bomboniere, socializar, pausa para o cigarro ou ir ao banheiro eram comuns.
No entanto, mesmo com uma duração tão fora do padrão atual, a narrativa de RRR não pede essa interrupção. De fato, o trabalho do diretor S. S. Rajamouli e do roteirista Vijayendra Prasad é uma verdadeira aula sobre como contar uma história que prende o espectador, deixando o desejo de saber como cada novo evento vai se desenrolar, um após o outro.
Não por acaso, até as cenas musicais, tão características do cinema indiano, funcionam como parte essencial da história. Em releituras estadunidenses, como o incrível Quem Quer Ser Um Milionário? (Slumdog Millionaire), elas geralmente ficam para o encerramento, quase como forma de cumprir uma lista de requisitos.
Já em RRR, são elas que mostram o poder do ideal revolucionário de Raju e Bheem. Um exemplo perfeito é a batalha de dança entre os protagonistas indianos e o inglês esnobe que tenta menosprezar os heróis por não serem capazes de replicar estilos como flamenco, tango ou suingue – menção que inclusive faz o baterista negro da banda que toca na festa balançar a cabeça em reprovação, uma sutil menção ao racismo tendo em vista que o suingue nasceu na comunidade negra).
Embora a cena seja construída como uma tentativa de Bheem – com a ajuda do elegante Raju – de conquistar a mocinha inglesa que admira, ela também serve como uma exaltação da cultura indiana diante dos esforços dos colonizadores de apagar essas características. Outro ponto alto das cenas musicais é a cena em que Bheem é açoitado em praça pública, na tentativa de instigar o temor no povo. Porém, a resiliência do herói, que canta uma canção folclórica enquanto tem a carne rasgada pelo chicote e se recusa a ajoelhar-se, incita a revolta na população e ensina uma lição valiosa a Raju.
Ora, se animações como Encanto (Encanto) e Viva: A Vida é uma Festa (Coco) podem usar atos musicais para emocionar e contar histórias, RRR também pode e faz isso em pontos cruciais da trama com maestria.
Momento perfeito
Voltando aos heróis que desafiam a realidade, embora Raju e Bheem sejam representações de personagens reais da Independência da Índia – algo como Dom Pedro ou José Bonifácio para traçar um paralelo injusto –, ambos realizam feitos sobre-humanos em cena.
Por um lado, pode parecer exagerado que pessoas reais tenham força para erguer uma motocicleta no ar. Inclusive, muito do sentimento de ridículo que temos ao ver obras de Bollywood nasce disso. Por outro, hoje em dia é difícil olhar para as maiores bilheterias do cinema e não ver uma produção onde o protagonista faz exatamente isso e muito mais.
A diferença é que no cinema ocidental o protagonista geralmente veste um uniforme cheio de cores e/ou tecnologia e se rodeia de armas e aparatos. Isso é visto em adaptações de quadrinho e em filmes de ação. Já Raju e Bheem estão em roupas comuns a maior parte do tempo.
Na verdade, talvez seja justamente a invasão dos filmes de heróis que torne esse o momento perfeito para que uma obra como RRR, tão única aos nossos olhos, seja bem recebida e abra as portas para mais desse cinema, que faz questão de ser épico e espetacular em tudo.
No fim, ainda que RRR misture fato e ficção para construir uma narrativa impecável, terminamos o filme sem perceber a passagem do tempo. Mais do que isso, fica tanto a sensação de que sabemos um pouco mais sobre o orgulho do povo indiano quanto o desejo de refletir sobre nosso próprio passado e orgulho. Em vista de tantas experiências atuais, há um quê de perigo nesse sentimento, mas não dá para negar que RRR é um filme imperdível.
Filme: RRR: Rise Roar Revolt (RRR: Revolta, Rebelião, Revolução) Elenco: N. T. Rama Rao Jr., Ram Charan, Ajay Devgn, Alia Bhatt, Olivia Morris, Shriya Saran, Ray Stevenson, Alison Doody, Samuthirakani, Chandra Sekhar, Makrand Deshpande, Rajeev Kanakala, Rahul Ramakrishna, Edward Sonnenblick, Varun Buddhadev, Spandan Chaturvedi, Mark Bennington, Ahmareen Anjum Direção: S. S. Rajamouli Roteiro: Vijayendra Prasad, Sai Madhav Burra, Madhan Karky Produção: Índia Ano: 2022 Gênero: Épico, Ação, Drama Sinopse: Se passando nos anos de 1920, antes do início da luta pela Independência da Índia, RRR imagina um encontro ficcional entre os revolucionários Komaram Bheem e Alluri Sitaram Raju, desencadeado depois que uma jovem Gond é sequestrada de sua vila por soldados britânicos. Classificação: 16 anos Distribuidor: Netflix Streaming: Netflix Nota: 9,5 |