SANDMAN

SANDMAN

Está ai uma série que tinha tudo para dar errado, agindo completamente na contramão das expectativas. Um desafio de adaptação que ficou flutuando naquele espectro de adaptações que ficariam somente nos reinos do sonhar…

Concretizou-se e, ainda com a presença do autor da obra Neil Gaiman (Coraline, Deuses Americanos e etc.) acompanhando seu desenvolvimento e produção. Vamos por partes, afinal, o que é Sandman? A obra de quadrinhos publicada pelo selo Vertigo (DC), no período de 1988 até 1996, nos conta a história de um dos Perpétuos, o Sonho (Morfeus) e sua jornada de auto-descoberta pelas andanças e eventos da humanidade. Neil Gaiman faz parte da tríade que vem das ilhas britânicas revolucionar os quadrinhos (Alan Moore – Watchman / Grant Morrison – Homem Animal) criando um fenômeno que se tornou automaticamente um clássico que deveria ser lido por todo entusiasta de boas histórias. Na obra original, há um exploração de diferentes temas, problemáticas e experimentalismos narrativos que constroem e descontroem o jeito de se contar histórias.

A série adapta seus dois primeiros arcos principais: Prelúdios e Noturnos (cinco primeiros episódios) e Casa de Bonecas (três últimos), contando com o sexto (e excelente) episódio com a Morte (sua irmã) e dois especiais lançados pós-temporada. Já que há muito para ser falado, vamos por partes então:

O primeiro receio que todo fã lida, principalmente, é com o visual, afinal estamos falando de quadrinhos com marcas visuais impressionantes, muitas vezes experimentais e, fora do convencional, soma-se a própria natureza surreal de narrar uma história do Sonho e seu Reino (O Sonhar). Nada a não ser elogios, com escolhas de elenco finíssimas senhores. Tom Sturridge (Morpheus) encarna muito bem a personagem principal, com um elenco de suporte que salta aos olhos: Gwendoline Christie (Lúcifer) conquista na sua primeira aparição, Boyd Holbrook (Coríntio) seduz e prende nossa atenção e, Kirby Howell-Baptiste (Morte) transmite a mesma delicadeza, leveza e sinceridade da personagem original. David Thewlis (John Dee) brilha na sua participação rápida e nos envolve na sua busca pelo seu precioso Rubi e a verdade sem fim. Já os cenários e momentos fantásticos (principalmente O Reino do Sonhar) geram sentimentos contraditórios. O CGI é bem polido, porém há nos momentos de grandeza uma sensação de efeitos especiais muito forte, quebrando a verossimilhança de imersão narrativa, deixando muito clara a quantidade absurda de fundos verdes sendo usados, muitas vezes não tão bem feitos (abraços ao início do primeiro episódio). O Inferno, lugar tão interessante, com diferentes interpretações para as telas de cinema e TV, aqui é meio sem graça, vazio e sem transmitir nada a não ser grandes paisagens, sem nem mesmo causar prazer visual. Há um quê cafona em outros momentos – em especial o encerramento do arco do personagem de John Dee, no quinto episódio – que parece proposital, porém o épico da cena nos quadrinhos – de tirar os ares do peito durante a leitura – esvai-se para nada além do cafona.

Agora, vamos olhar a série pela série – deixando comentários sobre algumas adaptações gerais para as considerações finais.

Bom, como disse, a série manteve bem pontuado os arcos que adaptou dos quadrinhos, sendo os primeiro cinco Prelúdios e Noturnos. O respeito pelo conteúdo original fica muito claro, a ponto dos episódios manterem os mesmos títulos dos quadrinhos. Lá vamos nós, ao icônico ritual que prende Morpheus, mestre do Sonhar, por um período de um século, causando danos catastróficos ao reino onírico e ao reino desperto. Uma prisão silenciosa, esticada como sua própria imortalidade, efetivada por um grupo de amadores que anseiam por desejos que remetem aos pactos medievais – imortalidade, o retorno de entes queridos à vida, luxuosidade. O elenco não nos captura aqui, além é claro da figura do Sonho na sua prisão de vidro, em silêncio tumular – já denotando as habilidades de interpretação do ator que o encarna – fora um furo de narrativa que, será exposto na posteridade do roteiro em episódios futuros (para quem assistiu, em torno dos corvos, onde sempre há um acompanhando o Mestre do Sonhar). Diríamos que é um início morno – mas comparada as mil e uma possibilidades de erro, é um mérito por si só o que foi executado e apresentado.

O restante dos episódios, seguimos Morpheus na sua jornada para recuperar suas três ferramentas – Seu elmo, sua Pederneira e seu Rubi – em episódios que marcam, em específico o quinto episódio. John Dee (David Thewlis) faz um marco de atuação, com uma plenitude única e paz em seus olhos, que buscam a pura e simples verdade absoluta, encarcerando suas vítimas na lanchonete – o próprio mundo – em uma realidade sem os sonhos, levando a humanidade à loucura, desgraça e destruição. Impressiona o nível de violência, em especial para uma produção Netflix, que ousa para fora do que se é esperado. Impacta em uma dosagem precisa. O duelo – quarto episódio – é interessante, retomando a duelos clássicos em torno do imaginário, promovendo um jogo antigo de palavras e significados, elevando-se ao nível cósmico, com uma lição de que a esperança nunca morre, afinal até mesmo os condenado à eterna prisão do inferno, sonham com o retorno aos palácios do paraíso. Casa de Bonecas (episódios finais), aproveita para expansão dos conceitos dessa narrativa fantástica, retomando problemáticas que nos foram apresentadas durante a prisão secular do protagonista. Aqui, são expostas mais facetas das personagens, as crises de ego de Morpheus e, a própria expressão surreal dos sonhos – e a interessantíssima fusão entre o onírico e o mundo desperto -, destaque é claro a fundação do culto que segue Coríntio, com a inventiva, criativa e sádica convenção dos cereais. A mistura entre as realidades é intrigante, promovendo a sensação de querer saber mais sobre aquele mundo, principalmente quanto as viagens entre os sonhos das personagens que povoam esse arco – salva de palmas para Barbie e Ken e, todo o elenco da pousada – que nos conquista no segundo em que aparecem. Rose Walker (Kyo Rais) foco desse arco, como Vortex do Sonhar, também se destaca pelo seu poder de viajar entre sonhos, promovendo uma tensão na sua busca pelo seu irmão mais novo.

Agora… Ao delicado – e melhor – sexto episódio (O Som de Suas Asas). Uma obra prima a parte, que sozinho já vale pela temporada inteira. Momento emblemático da apresentação da Morte, que desde as suas primeiras cenas, pontua uma sensibilidade com os humanos de abrir nossos corações. A sensibilidade da temática, em torno dos ciclos dos vivos, do eterno fim que estamos condicionados e a rotineira presença dela em tudo o que é vivo, embalsama aquilo na qual somos confrontados desde que o primeiro humano presenciou o abraçar do pós-vida, esse mistério eterno. Jovem, velho, criança, bebê, qual seja, estamos condicionados ao tempo que nós é dado, parafraseando a própria personagem – em uma fala do quadrinho – que é o tempo de uma vida. A beleza da finitude, de entender que estamos a um passo de escapar pelos dedos a maravilha do viver. Da metade do episódio em diante, observamos a amizade inesperada, advinda de uma aposta entre o Sonho e a Morte, sobre um humano que se recusa a morrer. O Sonho, propõe encontros com o humano, de cem em cem anos para ver quando estaria quebrado, disposto a se entregar aos braços de sua irmã. É de uma criatividade absurda, ver que realmente, a vida e as transformações que ela propicia – o tempo agindo sobre nós, seres humanos – é de uma intensidade, que o personagem não abandona de maneira alguma esse fio – promovendo mudanças no próprio Morpheus, que o entende como seu amigo – descendo do pedestal de uma figura acima de nós, afinal quem seriam os Perpétuos sem a humanidade?

E, nos resta perguntar: e enquanto adaptação? Bom, há determinadas mudanças que incomodam em relação ao conteúdo original. O principal fator, que fica óbvio, é um roteiro que precisa se deixar convencional, aderindo a certas estruturas clássicas, para permitir um acesso de um público mais leigo e afastado do universo dos quadrinhos. Pela natureza surreal da narrativa e o elenco de personagens nada tradicional, há um quê na obra original de trivialidade, algo corriqueiro. Não se vê um vilão, um problema a ser resolvido ou um arco do herói – não da maneira que se está acostumado a percebe-lo. Coríntio é uma presença carismática na série, porém seu papel vilanesco – sua presença permeando a maioria dos episódios, com sua trama de tentar impedir o Sonho de retomar a plenitude de seus poderes – o coloca como um pilar central que antagoniza o personagem principal. Nos quadrinhos, ele é só mais um problema que será lidado em seu devido momento, assim que a oportunidade ocorrer. Morpheus nunca está em risco, não há aquele ponto de intriga – o que será que ocorrerá com nossa personagem? – até mesmo sua prisão, apesar de o incomodar e promover toda uma crise existencial nesse ser tão romântico por natureza, não é além de um ponto na sua trajetória com a própria humanidade. Seu aprendizado – as mudanças de sua personalidade – ocorrem muito mais em seu espectro interno, do que pelos fatores externos – suas reflexões e inflexões pessoais que levam a sua mudança de atitudes – sem a necessidade (como a série faz) de colocar personagens externas, repassando lições de morais o tempo inteiro a Morpheus (às vezes relembra até as cafonas – porém sábias – falas de He-Man no fim de seus episódios). Por fim, ainda na questão do convencionalismo, colocar a personagem em risco, para gerar tensão e preocupação com seu destino – será que o seu fim está próximo? É aqui, inclusive que sempre vem a frase motivadora externa – destaque para a cena do duelo no inferno, onde seu companheiro corvo Matthew, necessita de soltar a cafona frase – sonhos nunca morrem! Perde-se um aspecto desafiador da leitura dos quadrinhos, que o tempo inteiro promove essas reflexões, que nos levam a ler e ler novamente, em busca de novos significados e interpretações de personagens que enriquecem e mudam, sem a necessidade de narrativas externas que nos digam o que está acontecendo.

Sandman foi um acerto bem pontuado da Netflix, com potencial fortíssimo de se tornar um carro chefe das séries do serviço de streaming. Tem seus altos e baixos, como toda série – nem pontuei, mas fica aqui a menção da nada memorável trilha sonora da série, que também perde potencial, em um quadrinho com tantas referências musicais icônicas – e, que se investir, tende a crescer e atingir o grande público das mídias atuais.  Vale a pipoca e a maratona, corre lá e dá uma prestigiada aos sonhos, que nos marcam e nos acompanham desde o momento em que nascemos!

Série: The Sandman (Sandman)
Elenco: Tom Sturridge, Boyd Holbrook, Patton Oswald
Desenvolvedor: Allan Heinberg, Neil Gaiman
Roteiro: David S. Goyer
Produção: Reino Unido, Estados Unidos
Ano: 2022
Gênero: Fantasia, Drama, Ação, Terror
Sinopse: Um século depois de ser capturado, aprisionado e ter seus poderes roubados, o rei dos Sonhos encontra um mundo completamente diferente.
Classificação: 18
Distribuidor: Netflix
Streaming: Netflix
Nota: 8.8

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