SOL, dirigido pela experiente Lô Politi é uma especie de road movie nacional que apresenta as dores familiares a partir da SOLidão. A ausência, o abandono e o silêncio são representados no filme de diversas formas. Ao mesmo tempo, o filme evoca a presença, os cuidados com as palavras, sons e tosses. E no cerne disso tudo fixa-se a figura paterna presente e ausente. Afinal, os pais parecem ser os únicos seres a alcançar a dádiva de, mesmo tendo um só corpo, ocupar dois lugares. Ou seja, conseguem ser ausentes enquanto presentes e perturbadoramente presentes através da ausência. SOL capta esses sentidos.
É sempre razão de especial entusiasmo ser convidado à cabine de imprensa de um filme nacional mais ou menos independente. São raras as produções que conseguem realizar uma ou acessar os devidos contatos para enviar os devidos convites. Todos e todas nós sabemos do bombardeio cultural e econômico (não se pode desvincular uma coisa da outra, no caso) que há muito sofremos devido ao domínio autoritário e ostensivo das produções estrangeiras, sobretudo estadunidenses, nas salas de cinema do Brasil. É uma guerra que há muito já paralisou nossos corpos. Não digo “anestesiou” porque isso significaria incapacidade de sentir os impactos. Definitivamente não creio que seja esse o caso.
Além de ser um filme nacional, SOL se passa no seio de filmes revolucionários: a Bahia, meu estado. Mesmo Salvador só se mostrando timidamente e em momentos muito específicos, há um raro deleite fruto do encontro entre o corpo local e o seu local deslocado para o surreal. A paisagem é a mesma e, no entanto, tudo é diferente. Vejo a rua por onde passo quase que cotidianamente, mergulho naquele espaço, mas não estou lá. Estou na narrativa que se apresenta e que, como num bom Cinema, busca superar a estranheza alcançando o triunfo da identificação. Essa identificação que é representada no filme através da relação filha-pai-avô, é também rejeitada pelo personagem principal, o pai, que busca abandonar o seu pai que o abandonou. A filha, nesse ínterim, aproxima-se do avô de forma que a evitar seu abandono (o seu próprio ou o só seu avô? Não se sabe…). São teias que se compõem e dilaceram. “A família é berço de paranóias”, já escreveu Lacan.
Há no filme uma digna elaboração sobre estas questões. A melhor representação de todo esse conflito está na personagem que o gerou: o pai/avô, interpretado impecavelmente por Everaldo Pontes. Seu silêncio e distância são reflexos da sua ferrenha ausência na criação do filho que agora tem que criar a filha. Sutilmente, entre tudo isso, o fascínio desse pai e avô com o mar. Essa matéria poética que certa vez ouvi ser definida pelo ator e roteirista Thiago Almasy mais ou menos como “composta de lágrimas e distância” se analisada historicamente sob a perspectiva afrocentrada. Podemos pensar então que tais símbolos são perseguidos pelo pai/avô que busca de todas as formas reafirmar a distância mesmo que na busca por derrotá-la.
SOL tem um roteiro que se mostra muito cru, direto, corajosamente simples e capaz de despertar lógicas complexas. A simplicidade sempre é algo absolutamente arriscado porque reside entre a destreza/maestria e o despreparo. Ora, é muito mais fácil alienar dos vazios através de artifícios capazes de “colorir” o roteiro e o filme. SOL, por bem ou por mal, não se colore. Seu tema é nítido e se mantém quase intacto do início ao fim. É, aliás, no seu início que o filme se encontra mais frágil. A ambientação em certos aspectos, como a inauguração da relação do pai com sua filha, é relativamente bem executada. Em outros, como a apresentação da força motriz do filme, a ambientação é desastrosa. E esse desastre conta com a participação importantíssima do elenco que, no início, transparece absoluta estranheza entre si e com as suas personagens que parecem inaugurar uma relação próxima de pai e filha. Isso torna-se perceptível pela dissonância entre os tons das atuações, sinalizando que o ator e atriz não se percebiam, ou não foram dirigidos, a fim de partilhar o mesmo cenário, cantar a mesma música sob uma só tela. A parte boa é que com o desenrolar do filme, a afinidade do elenco com as personagens vai se dando. E que fique nítido: a estranheza entre as personagens não deve ser confundida com a estranheza do elenco com as suas personagens e/ou entre si. Um elenco mesmo representando personagens que se estranhem devem compor essa estranheza em conjunto. Não cada um num tom sem o ensaio que precede a harmonia. Creio ter sido esse o cerne da fragilidade explicitada no início do filme. A direção de elenco é mesmo um universo muito complexo. No entanto, Everaldo Pontes (que interpreta o pai/avô) e Luciana Souza (que interpreta com destreza sua fiel vizinha) dão um verdadeiro show de atuação e harmonia. Ou seja, tenho mesmo razões para crer que a distância entre as personagens do pai e da filha foi imposta ao elenco. E a distância entre as personagens não justifica a distância do elenco com a sua personagem ou mesmo com as demais, enfim. Aparentemente, uma coisa levou a outra e causou um dano ao filme.
No mais, SOL cumpre sua função ou aquela à qual parece se propor através da sua narrativa singela, emocionante com um tempo levemente vagaroso e bem sustentado. Por fim, há uma conclusão interessantíssima: seu fim não se dá com um fato, sim com um sentimento. Sua explosão desencadeará ações que o público foi preparado para antever. Por exemplo, mudanças nas relações e a descoberta de outros mundos no mundo das personagens. Pena não poder dizer que o mesmo acontecerá conosco, público.
Filme: SOL Elenco: Rômulo Braga, Malu Landim, Everaldo Pontes, Luciana Souza Direção: Lô Politi Roteiro: Lô Politi Produção: Brasil Ano: 2022 Gênero: Drama Sinopse: Um pai recém-separado, que não consegue se reconectar com a filha de dez anos, é obrigado a viajar com ela para o interior do País em busca do próprio pai que o abandonou quando criança e agora quer morrer. O convívio forçado com o pai que ele odeia e a imediata conexão de sua filha com o avô testa todos os seus limites, mas lhe dá a chance de se reaproximar da filha. Classificação: 14 anos Distribuidor: Paris Filmes Streaming: Indisponível Nota: 7,0 *Estreia dia 08 de dezembro de 2022 nos cinemas* |