STREAMING E CINEMA: A REVOLUÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO CINEMATOGRÁFICA

STREAMING E CINEMA: A REVOLUÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO CINEMATOGRÁFICA

Este artigo é a adaptação de um trabalho que entreguei em 2021, como requisito para conclusão da disciplina de Economia da Tecnologia, na Universidade Federal Fluminense (UFF). O trabalho consistiu, à época, em um ensaio sobre o processo inovativo no setor audiovisual, durante o período em que o streaming vinha se consolidando como a principal forma de distribuição de filmes. Além do surgimento de diversos serviços de streaming nos anos anteriores, a restrição imposta às salas de cinema pela pandemia do Covid-19 intensificou esse processo, no qual as preferências e hábitos dos consumidores foram impactados de forma significativa. Ao longo dos últimos anos, as receitas dos serviços digitais de empresas como Netflix, Prime Video, Disney+ cresceram de maneira expressiva ultrapassando as bilheterias de cinema.

Durante o processo de adaptação, aproveitei para atualizar informações e revisar criticamente alguns pontos levantados. Isso permitirá dar luz a novas ideias e tomar novas conclusões que não haviam sido enxergadas quando o trabalho foi realizado.

Conceitos de tecnologia e inovação

Karl Marx considera que a tecnologia é fruto do processo de acumulação de capital e, por isso, não é um bem disponível a toda a população (MARX, 1983). Apenas as empresas com grande poderio financeiro teriam acesso à tecnologia de ponta, intensificando as contradições existentes entre capital e trabalho. Podemos entender que a tecnologia na sua visão seriam os métodos de produção capazes de aumentar a produtividade, e que ela seria fruto de um processo de acumulação, empregada em ciclos de produção. A acumulação de capital e de tecnologia teriam, portanto, origem em um mesmo processo intensificando-se mutuamente.

Em Schumpeter (1961), a tecnologia é o principal motor do desenvolvimento econômico. O processo inovativo se dá através das empresas que buscam vantagens competitivas no mercado para obter benefícios econômicos. As organizações inovam a partir da criação de novos processos e produtos diversificando a produção existente e, consequentemente, criando novos hábitos de consumo. Quando os novos hábitos de consumo vão substituindo os antigos, ocorre a “destruição criadora”.

Segundo o autor, a inovação pode ser identificada quando:

    1. Surge um novo produto, ou um mesmo produto passa a apresentar uma qualidade superior;
    2. Um novo método de produção é amplamente empregado;
    3. Surge um novo mercado;
    4. Há transformação significativa nos insumos empregados;
    5. A indústria se organiza de uma forma diferente.

O cinema e o progresso científico-tecnológico

O setor audiovisual, mais especificamente o cinema, engloba uma cadeia extremamente complexa, envolvendo tanto atividades de produção e distribuição de filmes, como comercialização de máquinas e equipamentos (câmeras, equipamentos de som, etc.), além de serviços de natureza diversas – como publicidade e propaganda. Embora seja muito difícil delimitar todo o setor, consideraremos as atividades de produção e distribuição de filmes para nossa análise, buscando compreender mudanças significativas nas formas de organização dessas atividades na indústria cinematográfica, principalmente em relação à distribuição de filmes.

O cinema responde às mudanças nos padrões tecnológicos desde a sua criação. O surgimento da indústria cinematográfica está relacionado à uma revolução científico-tecnológica ao final do século XIX. Segundo COSTA (1994):

A invenção dos aparelhos ligados à captação e recriação de imagens em movimento também acompanhou o movimento destas transformações [a revolução científico-tecnológica]. Inicialmente, seguindo o modelo artesanal das produções científicas de então, os aparelhos de produção e reprodução visual de imagens entraram na corrente da industrialização massiva ao mesmo tempo em que acenaram com capacidades de gerar lucro e de expandir mercado.

            De acordo com a autora, o cinema surge como experimentação científica, existindo um processo gradual até o momento em que a indústria cinematográfica se organizou como tal. Para se organizar como indústria, os empresários precisaram perceber o potencial lucrativo do cinema e, através da inovação, produzirem filmes que combinassem os anseios do público, os consumidores, e a exploração da novidade. Os lucros incentivaram ainda mais a busca por inovação permitindo a acumulação de capital industrial e possibilitando ciclos de reinvestimentos.

Ao longo da história da sétima arte, podemos pontuar diversos episódios em que novas descobertas impactaram significativamente os padrões de produção e consumo. O surgimento dos filmes falados, o Technicolor e o surround (técnica sonora que aumenta a imersão) foram moldando as preferências dos consumidores, criando hábitos que substituíram os antigos. É crucial destacar que nem sempre as novidades foram aceitas de imediato, apresentando resistência tanto por parte do público, quanto pelos produtores. Um exemplo é a produção de filmes falados, pois muitos acreditavam que o potencial artístico estava nas imagens, e o som poderia limitar a sua expressão. Entretanto, os produtores começaram a produzir cada vez menos filmes mudos refletindo os anseios dos consumidores, ávidos por novidade. Tanto do ponto de vista da demanda quando da oferta, a indústria começou a rejeitar os filmes mudos.

Demanda por inovação: o impacto sobre as bilheterias de cinema

Para ilustrar a ideia de que inovação (do ponto de vista da tecnologia) é algo que cativa o público e traz receita, podemos olhar para as maiores bilheterias da história do cinema. Em 2021, quando esse trabalho foi elaborado, as 5 maiores bilheterias mundiais eram:

1: Avatar (2009)

2: Vingadores: Ultimato (2019)

3: Titanic (1997)

4: Star Wars: Episódio VII (2015)

5: Vingadores: Guerra Infinita (2018)

Entre esses filmes, podemos analisar alguns fatores em comum. O primeiro é uso avançado de tecnologia, especialmente em computação gráfica e efeitos visuais.  “Titanic” e “Avatar” são reconhecidos até hoje por desafiar os limites tecnológicos em suas épocas de lançamento, e exploraram esse discurso nas suas campanhas de marketing.

Não podemos limitar a bilheteria como fruto apenas da questão tecnológica, porque existem alguns fatores não relacionados à tecnologia que também são comuns a esses filmes (que pertencem ao mainstream cinematográfico). Os cinco possuem uma história relativamente simples, que pode ser facilmente compreendida pelo espectador, com tramas épicas baseadas na luta do bem contra o mal. Isso mostra que a indústria, além de buscar uma postura inovadora, também foi responsável por padronizar o gosto dos espectadores influenciando as suas preferências e limitando as estruturas narrativas.

Bilheteria de cinema e receitas de streaming: uma comparação

A análise das maiores bilheterias de cinema revela que os consumidores são atraídos por essa sensação de novidade, de explorar algo que nunca foi feito do ponto de vista da técnica, mesmo que isso não implique em feitos estéticos verdadeiramente impactantes. Essa exploração dos limites da tecnologia cria a sensação de que a indústria está diversificando seus produtos (geralmente, o efeito é contrário), atraindo o público pagante e cobrando cada vez mais caro pelos ingressos. Isso permitiu um crescimento da receita até 2019 (Box Office Mojo), mesmo diante de uma redução no número de ingressos vendidos (Statista), o que ajudou a preservar a rentabilidade da indústria por muito tempo.

No entanto, em 2020, com as restrições impostas pela pandemia do Covid-19, a receita da bilheteria do cinema caiu drasticamente, uma queda jamais vista antes. Embora tenha se recuperado da crise imposta pela pandemia em poucos anos, a receita ainda não retornou aos patamares registrados até 2019. Podemos olhar para a bilheteria doméstica dos Estados Unidos em alguns anos-chave: em 2019, a receita com venda de ingressos foi de US$ 10,95 bilhões contra US$ 2,11 bilhões em 2020; e depois foi crescendo até alcançar US$ 8,9 bilhões de dólares, em 2023 (Box Office Mojo).

As condições impostas pela pandemia, além de impactar negativamente a bilheteria, também impuseram novas questões sobre a produção e distribuição de filmes. Nesse contexto, os serviços de streaming se consolidaram como a principal forma que o público tinha de assistir a filmes. Além de propor uma solução para a interdição das salas de cinema, os serviços de vídeo sob demanda (VOD) também deram mais comodidade ao espectador, possibilitando o consumo no conforto de casa, além de oferecer um catálogo relativamente diversificado. Além disso, as plataformas de streaming promovem uma experiência personalizada, baseada nas preferências do usuário e algoritmos de consumo.

Mais do que uma solução temporária para a interdição das salas, os serviços de VOD, que já vinham apresentado crescimento significativo, se mostraram um mercado extremamente rentável e lucrativo. O aumento da receita das principais empresas acelerou a perda relativa de espaço das salas de cinema frente aos serviços de vídeo sob demanda. Em 2023, a bilheteria mundial de cinema foi de cerca de US$ 34 bilhões (Box Office Mojo), enquanto somente a Netflix, líder e pioneira do setor, apresentou uma receita de US$ 33,7 bilhões. A PrimeVideo obteve uma receita de US$ 14 bilhões e o valor obtido pela Disney + superou os US$ 8 bilhões. Esses resultados revelam a consolidação do streaming como a principal e mais lucrativa forma de distribuir filmes para os consumidores.

Entretanto, as salas de cinema se concentram na distribuição de lançamentos, enquanto as reexibições possuem caráter de exceção nesse espaço. Nos streamings, lançamentos fazem parte do catálogo, mas não são a maioria. Podemos dizer, então, que as salas de cinema conservam seu papel como principal janela para exibição de lançamentos – e ainda continuam sendo cotadas como primeira opção para grande parte dos estúdios.  Dentro desse contexto, as empresas se deparam com decisões cada vez mais complexas de lançamento, onde o timing assume um caráter essencial. Por exemplo, antecipar a entrada de um filme no catálogo de streaming, ao mesmo tempo em que atrai novas assinaturas, pode limitar a sua bilheteria no cinema. Assim como um serviço de streaming com poucos lançamentos também podem afetar negativamente a percepção do público.

Outro aspecto interessante é a possibilidade de segmentação de mercado que o streaming possibilita. As salas de cinema, na maior parte do país, exibem apenas os blockbusters e outros sucessos comerciais. Filmes com menor orçamento e os títulos tidos como “de arte” acabam ficando restritos a cinemas específicos, mostras e festivais, que, embora sejam extremamente importantes para manter o cinema vivo, têm o seu alcance extremamente limitado. Os serviços de streaming “alternativos”, como Sesc Digital, Mubi, Tamanduá TV (especializado em produção nacional independente), Looke, Sundance Now e Tubi, solucionam uma demanda que não era atendida, sequer percebida, pelas salas de cinema, muito menos pela TV aberta. Dessa forma, apresentam uma possibilidade de atuação para produtoras e distribuidoras operarem em um sistema de nichos, direcionando conteúdo verdadeiramente personalizado e especializado para alguns grupos de consumidores. Isso contribui para a proliferação de clássicos do cinema e de expressões artísticas independentes e autênticas.

Considerações finais

Vimos que a inovação pode ocorrer de diversas formas, como a partir da criação de um novo produto ou do surgimento de um novo mercado. A inovação na indústria cinematográfica nas últimas duas décadas foi marcada pelo surgimento de um novo mercado: os serviços de streaming.  Esse mercado, da maneira como conhecemos hoje, tem suas origens no lançamento da Netflix, em 2007. A última década foi crucial para consolidá-lo e revelar todo o seu potencial lucrativo. Com a perda da importância relativa das salas de cinema, intensificada pela pandemia do Covid-19, o streaming impõe novos paradigmas e propõe novas soluções para toda uma indústria.

O surgimento desse mercado impacta toda a maneira como a indústria se organiza. Os novos paradigmas de distribuição influenciam na relação entre as atividades dessa complexa cadeia.  Nesse sentido, têm-se mudanças significativas nas relações de parceria no setor, nas preferências e no comportamento dos consumidores, além da integração com usuários. Dessa forma, estimulam o contínuo desenvolvimento da indústria, e sua constante busca por inovação e lucro. Cabe às empresas identificar as novas tendências e atuar ativamente nesse processo de descoberta.

Entretanto, é importante estabelecer uma visão crítica sobre os fenômenos mencionados. A padronização das obras artísticas, como consequência da busca por eficiência na produção e pelo sucesso comercial, prejudica o cinema enquanto arte. Além disso, nem todos os hábitos antigos devem ser abandonados, pois são importantes para manter o cinema vital. Por exemplo, assistir um filme em uma sala de cinema, assim como a existência de cineclubes e festivais independentes, apresentam-se como experiências compartilhadas por todo um coletivo, de maneira que o streaming não pode proporcionar. Alguns desses hábitos tendem e precisam resistir, por motivos culturais, aos novos paradigmas industriais.

Referências

COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. 1994.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna e colaboração de Lucio Colleti. 3. ed. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas).

NETFLIX. Netflix reports Q4 2023 earnings. 2023.

PRIME VIDEO. Performance Metric Reports. 2023.

SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Tradução de Nivaldo dos Santos. São Paulo: Fundo de Cultura, 1961.

THE WALT DISNEY COMPANY. Investor Relations. Q4 FY23.

STATISTA. Film industry in the United States and Canada. Disponível em: https://www.statista.com/. Acesso em: 8 nov. 2024.

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