O melhor filme dos últimos anos ou só mais um entre vários outros? Fazendo jus a seu nome, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once) pode ser as duas coisas de acordo com a experiência de cada pessoa que assiste. Contudo, é impossível negar que quanto mais pensamos sobre a narrativa dos “Daniels” (como se apresentam os diretores Daniel “Dan” Kwan e Daniel Scheinert), mais camadas de significado ela ganha.
Essa pode parecer uma ideia óbvia, que vale para qualquer obra cinematográfica já feita (ou quase). Porém, esse conceito parece dizer muito mais nessa mistura de aventura, ficção científica com boa dose de comédia, mas que também é um drama existencial sobre uma imigrante chinesa sofrendo com a prestação de contas ao equivalente estadunidense da Receita Federal.
Essa impressão começa justamente quando o que parece ser apenas um filme sobre problemas cotidianos, de repente, é inundado por um multiverso alucinante que vai de cenas de luta empolgantes, dedos de salsicha e pedras silenciosas até uma profunda discussão sobre o que somos, o que poderíamos ser e se realmente vale a pena fazer qualquer coisa entre uma coisa e a outra.
Tudo com quase “nada”
Comecemos pelos números. Assim como o primeiro conflito da protagonista Evelyn Wang (Michelle Yeoh), o orçamento de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo foi bem humilde. O filme foi feito com um orçamento de cerca de US$ 25 milhões e arrecadou quase quatro vezes esse valor, se tornando a maior bilheteria da A24 – estúdio por trás de filmes como Midsommar e Hereditário. Vale ressaltar, tudo isso mesmo sendo protagonizado por asiáticos, sem ter grandes nomes da moda de Hollywood e em um mundo ainda assolado pelo medo da pandemia do novo coronavírus.
É possível dizer que US$ 25 milhões é bastante dinheiro para nós, reles mortais vivendo a pressão do capitalismo tardio como acontece com Evelyn e seu marido Waymond (Ke Huy Quan). Porém, para fazer uma comparação até certo ponto injusta, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura – um filme que tem o conceito de multiverso explícito em seu nome – teve uma verba de produção de quase US$ 200 milhões. Com o paralelo traçado, é difícil dizer que essa diferença de orçamento pode ser percebida no resultado em tela que os dois filmes entregam.
Outro ponto relevante é, que apesar de ter quase que apenas uma locação – a maior parte das cenas acontece dentro do prédio da já mencionada “Receita Federal” – e um núcleo principal composto por cinco atores, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo dá a sensação de ser uma daquelas obras gigantescas. Isso, indiscutivelmente, é mérito do roteiro escrito pelos “Daniels” e do talento de Michelle Yeoh, Ke Huy Quan, Stephanie Hsu (que interpreta Joy, filha do casal principal), James Hong (que vive Gong Gong, literalmente o avô da família), Jamie Lee Curtis (no papel da endurecida funcionária pública e antagonista Deirdre Beaubeirdre) e demais nomes que dão vida ao texto.
Triunfo artístico
Falando sobre atuações talentosas, é difícil não se derreter pelo casal de protagonistas. De um lado, vemos Michelle Yeoh, uma das maiores estrelas do cinema de artes marciais asiático que se tornou conhecida mundialmente em O Tigre e o Dragão. Do outro, está ninguém menos que Ke Huy Quan, a estrela mirim padrão para papéis asiáticos na década de 1980 e que interpretou Short Round em Indiana Jones e o Templo da Perdição e Data em Goonies, por exemplo.
Quando o filme começa, Yeoh está irreconhecível. A mulher forte, habilidosa e séria que nos acostumamos a ver nas telas, se apresenta como uma matriarca sobrecarregada e dona de lavanderia amargurada, ainda tentando vencer na vida tantos anos depois de ter imigrado para os Estados Unidos. Já Quan – que ficou longe dos holofotes por anos – parece em casa no papel do asiático cômico, mas não demora para o roteiro subverter esse conceito e chocar o espectador com a amplitude dramática do ator.
Curiosamente, a trama havia sido escrita para ter Jackie Chan no papel principal. É verdade que o mestre das artes marciais misturadas à comédia já provou que também é capaz de atuações com boas doses de carga dramática, como em O Estrangeiro e em adaptações para o cinema de períodos históricos da China. Mesmo assim, depois de ver Yeoh em ação é difícil imaginar que Chan pudesse fazer melhor.
Mais uma vez fazendo referência a seu próprio nome, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo começa despretensioso, mas quando os crédito finalmente começam a rolar é comum a impressão de que tivemos uma experiência difícil de definir. Ainda na primeira parte do filme, essa família chinesa que parece caber no estereótipo padrão do imigrante asiático começa a apresentar rachaduras, tanto metafóricas como literais.
Em poucos minutos, vemos como Evelyn se sente esmagada pela responsabilidade de perseguir um sonho que não é dela no negócio de lavanderias, como Waymond se sente preso em um casamento que mais parece ser um trabalho e como Joy, apesar do nome que pode ser traduzido como “alegria”, não se sente feliz e nem sente que traz felicidade para sua mãe. Correndo por fora, o avô Gong Gong ocupa a posição de mantenedor das tradições e cultura chinesas como a única coisa que lhe resta fazer.
O verdadeiro multiverso da loucura
De fato, o último filme do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU na sigla em inglês) sobre o Doutor Estranho tem as palavras “multiverso” e “loucura” em destaque no título. Ainda assim, é Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo que incorpora esses conceitos com toda força e mostra como a experiência de existirem várias versões do mundo em que vivemos poderia ser.
É depois de uma discussão entre mãe e filha nas primeiras cenas do filme, a família começa a rachar metaforicamente e segue sem Joy, que deveria atuar como ponte entre os idiomas mandarim e inglês, para a reunião de prestação de contas na “Receita” com Deirdre. Ainda no elevador do prédio, Waymond passa por uma mudança inexplicada de comportamento e dá orientações estranhas a Evelyn para logo depois voltar a ser o marido que ela considera bobo e meio inútil.
Tudo isso leva a um sentimento de confusão que se acumula no espectador e não é para menos, afinal esse também é o estado de espírito que toma conta de Evelyn, da cena inicial diante de um amontoado angustiante de papéis e anotações até aquele momento crucial para o negócio e a vida da família.
E é então que a protagonista racha de forma literal, sendo por fim apresentada ao fato de que a dona de lavanderia é apenas uma de muitas Evelyns que existem em universos diferentes. O problema é que também existe uma ameaça, que pode destruir todas essas realidades, e o que aquele Waymond com mais testosterona busca é a versão de Evelyn que será capaz de salvar o multiverso.
Muitas camadas e metalinguagem
Essa enxurrada de acontecimentos e informação acontece ainda nos minutos iniciais do filme e o que temos dali em diante é um espetáculo narrativo ao mesmo tempo caótico e coeso. Se, de fato, existem múltiplos universos onde cada um de nós tem versões variadas, com algumas características físicas distintas e escolhas capazes de mudar completamente o curso de nossas vidas, o elenco de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é a melhor representação dessa ideia já realizada.
Na jornada para adquirir habilidades para salvar o mundo, o casal de protagonistas viaja por essas realidades. Já o espectador assiste boquiaberto a Michelle Yeoh e Ke Huy Quan se transformarem por completo, voz, aparência e trejeitos, para convencê-lo de que não são mais os mesmos personagens que vimos minutos antes.
Pouco a pouco, cena a cena, passamos do cotidiano entediante de mais uma família presa na burocracia do Estado para sequências intensas de ação com uma dose cavalar de humor nonsense (enorme salva de palmas para a incrível coreografia de luta na cena envolvendo troféus com os atores Brian e Andy Le) até chegar ao drama existencial que nos faz pensar se a vida realmente tem sentido.
Mais do que isso, tudo se junta em cada canto ao mesmo tempo para culminar na relação entre duas gerações, mãe e filha, e na percepção de que o “e se” não importa tanto quanto o aqui e agora. E, sendo assim, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo pode até não ser o melhor filme já feito em muitos anos, mas sem dúvida é um que vale muito a pena assistir.
Filme: Everything Everywhere All at Once (Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo) Elenco: Michelle Yeoh, Ke Huy Quan, Stephanie Hsu, James Hong, Jamie Lee Curtis, Tallie Medel, Jenny Slate, Harry Shum Jr., Randy Newman, Biff Wiff, Sunita Mani, Aaron Lazar, Brian Le, Andy Le Direção: Daniel Kwan e Daniel Scheinert Roteiro: Daniel Kwan e Daniel Scheinert Produção: Estados Unidos Ano: 2022 Gênero: Ação, Aventura, Comédia, Ficção Científica, Drama Sinopse: Uma idosa imigrante chinesa se envolve em uma aventura louca, onde só ela pode salvar o mundo explorando outros universos que se conectam com as vidas que ela poderia ter levado. Classificação: 14 anos Distribuidor: Diamond Films Streaming: Indisponível Nota: 9,8 |