São tempos difíceis para quem necessita ter fé. Isto é, para quem não consegue duvidar. São tempos ainda mais difíceis para aqueles que precisam da fé dos outros para se proteger ou simplesmente garantir seu bem-estar. E confiança também é sinônimo da fé à qual me refiro. Há muita violência fruto de tanta miséria e fome. Seus causadores seguem ilesos. Já seus sofredores…
“Um Herói”, filme lançado hoje no Brasil, escrito e dirigido pelo iraniano Asghar Farhadi, nos leva de forma esguia a encarar. talvez pensar depois, os submundos que criamos. Há inúmeros versos, várias canções, requintadas teses que tratam da nossa impressionante capacidade de inventar e crer. Porém, o que não retrataram, por soberania do tempo, é o quão mais fácil ficou somente crer no mundo que “algoritmicamente” inventamos e, logo em seguida, julgar outros mundos e seres com base nele, o nosso. E talvez caiba pensar no quão ignorantes ou negativamente vaidosos (no sentido de valor negativo, não de moralmente desprezível) precisamos ser e somos para acreditar que o que acreditamos rege todo o Universo. Pior: os Universos que não contemplamos.
Mas até aqui, é tudo muito óbvio e palatável, diferente do filme. Digo, o seu roteiro exige e nos impõe, quase sorrateiramente, um tempo outro. Um tempo que é necessário para que sejamos, enquanto público, emaranhados nos suntuosos e delicados fios da sua surpreendente e trágica narrativa. O mesmo roteiro nos leva a estabelecer uma relação ambígua na qual torcemos sem medo, confiamos. E não, não se trata de uma torcida clichê e estadunidense, dicotômica em prol de um mocinho e contra o vilão. Certamente o trabalho que foi melhor desempenhado nesse filme foi o da estrutura do roteiro. Ele foi escrito e, a partir daí, o filme foi montado por Haydeh Safiyari e dirigido pelo também roteirista Asghar Farhadi, de forma que somos algozes e clementes sem que em nós haja qualquer rivalidade entre esses. A narrativa não é tendenciosa nesse sentido. A ausência de trilha sonora musical, por exemplo, é um luxo sabendo que muito frequentemente as músicas são utilizadas como ferramentas para impor algo que a direção e o roteiro não conseguiram nos entregar de forma suave, construída, elaborada. Em “Um Herói”, a pulga atrás da orelha é cautelosamente alimentada. Nós esquecemos e, quase sozinhos, a lembramos. No filme em questão, não é difícil duvidar de si mesmo sozinho, sem nenhuma imposição.
De todo modo, o filme atiça um debate muito delicado e importante: quem de nós tem o direito de julgar e quanto poder podemos ter nas mãos para fazê-lo? Amantes da História especialmente atentos aos debates decolonial, antimanicomial e abolicionista, sabem que as ideias se enraízam. E o fazem não apenas no sentido de criarem força para se sustentar ao longo dos tempos. Mas se sustentam justamente porque se transmutam, atualizam-se de forma a estabelecerem uma espécie de linhagem. Ou seja, elas facilmente se replicam com outra roupagem. Por isso, no filme e fora dele, as tecnologias e seus algoritmos são utilizados contra aqueles que já têm uma imagem social historicamente danificada. Não é à toa. E vale ressaltar um ponto: o filme consegue ter nas telas a reprodução fidedigna da sua ‘intenção”. Digo, há uma harmonia entre todos os elementos fílmicos. De modo que, por exemplo, o filme se propunha a discutir a humanidade diante das deturpações fruto do mau uso (e é possível outro?) das tecnologias, especificamente das mídias sociais. Buscando alcançar essa meta, a Fotografia assinada por Ali Ghazi, por exemplo, mostra na maioria dos planos sempre mais de uma pessoa, de modo que dificilmente alguém está absolutamente sozinho. Junta-se a isso os breves sinais que o filme nos dá do assunto que irá abordar. Quer dizer, como o objetivo é falar das pessoas na era digital, a concentração é nelas de forma que quase não se vê aparelhos digitais, sem que eles representam justamente o que conduz a narrativa. Existem muitas outras pontes bem cuidadas e soltas, no melhor sentido da expressão: o de prontas para serem percebidas, capturadas.
Mas ficam soltas, ao léu, para nós capturarmos outras pontas tais: a quem interessa a patrulha virtual sedenta de engano? O que precisa ser feito para que tenhamos alguma garantia de direitos em relação ao mundo virtual? Do que abrimos mão quando buscamos convencer alguém de que somos algo perfeito? E sim, uso “algo” porque se existe alguma perfeição, não cabe à humanidade. São condições antagônicas. E apesar da ilusão de liberdade no mundo virtual, a prisão a qual somos condenados não é outra senão a da impossibilidade de sermos nós mesmos, humanos. O maior tribunal do mundo é virtual. E é descendente da Inquisição e demais forças desumanas que buscam também alguma perfeição, pureza, raça ariana ou qualquer outro valor absoluto. Quando aceitaremos que isso não existe? Qual é a possível fuga? Não há resposta ou perfeita compreensão em “Um Herói”. Precisamos aceitar a dúvida que nos aflige. Deixemos de buscar a resposta, única porque ela também é uma contradição.
Filme: قهرمان ou Ghahreman (Um Herói) Elenco: Amir Jadidi, Mohsen Tanabandeh, Sahar Goldust, Fereshteh Sadre Orafaiy, Sarina Farhadi, Ehsan Goodarzi, Alireza Jahandideh, Maryam Shahdaei Direção: Asghar Farhadi Roteiro: Asghar Farhadi Produção: Irã, França Ano: 2021 Gênero: Drama, Suspense Sinopse: Rahim está preso por causa de uma dívida que não conseguiu pagar. Durante uma condicional de dois dias, ele tenta convencer seu credor a retirar a queixa, se conseguir pagar parte do que deve. Mas as coisas não saem como planejadas. Classificação: 12 anos Distribuidor: Califórnia Filmes Streaming: Indisponível. Nota: 8,0 *ESTREIA HOJE, 28 DE JULHO, NOS CINEMAS* |