UMA GAROTA DE MUITA SORTE

UMA GAROTA DE MUITA SORTE

Uma garota de muita sorte 

Casa perfeita, emprego perfeito, noivo perfeito, tudo indo como o planejado. Realmente parece que Ani Fanelli (Mila Kunis) tem tudo que alguém poderia desejar. Se não fosse, claro, traumas pesadíssimos do passado que ela parece que enterrou ao invés de processar. Com a produção de um documentário sobre uma tragédia de seu passado, Ani é obrigada a desenterrar esses traumas e pessoas se quiser ter a oportunidade de contar seu lado da história. 

Uma Garota de Muita Sorte” (Luckiest Girl Alive) é um novo filme da Netflix que está dando o que falar, por tocar em tópicos como violência por armas, abuso sexual, bullying e a vivência diária de sobreviventes que já não é fácil por si só, e pode só piorar dependendo das pessoas que estão ao redor.  Recomendo que pessoas que passaram por situações similares de abuso ou violência assistam o filme com cuidado, pois este não tem medo de tocar nesses assuntos de forma direta. 

Mila Kunis vive Ani Fanelli, em uma de suas melhores performances até hoje. Ani é ao mesmo tempo confiante, inteligente e madura, e obcecada pela vida perfeita, fechada e distante. As pessoas de sua vida sabem, até certo ponto, do que ela passou. Ela faz de tudo para deixar o passado para trás, sem parecer escondê-lo de seus entes queridos.

Parecer é a palavra-chave desse filme. Ani quer manter as aparências de alguém que superou tudo, quer riscar todos os itens da sua lista da vida perfeita. Seu noivo, Luke Harrison (Finn Wittrock, de “American Horror Story”) e sua mãe, Dina (Conie Britton, de “American Horror Story” e “The White Lotus”) querem que ela pareça curada, que ela supere tudo. As únicas duas pessoas que apoiam Ani incondicionalmente ao saberem de toda a sua história são sua chefe, Lolo (Jennifear Beals, de “Flashdance” e “The L Word”) e sua melhor amiga, Nell (Justine Lupe, de “Succession” e “The Marvelous Mrs. Maisel”).

 

Culpabilização da vítima 

Ani sofre diversas revitimizações ao longo da vida. Tanto em seu passado, quando não acreditam em sua versão dos fatos, quanto no presente, quando acham que já passou tempo demais para ela ainda ser afetada por seu passado ou quando ela tem que enfrentar esse passado cara a cara. 

O documentário desencadeia, finalmente, todos os sentimento que Ani tem sobre seu passado e seu presente, que ela havia suprimido em busca da vida perfeita que, supostamente, apagaria toda a dor e o trauma. No entanto, fora Nell e Lolo, e talvez o documentarista, ninguém está muito interessado no que ela está sentindo no momento, pois isso não se encaixa na visão de mundo dessas pessoas – como seu noivo ou sua mãe. 

Essa vivência de Ani tocou muito pessoas que já passaram por essa situação elas mesmas ou que têm conhecidas(os) que passaram por isso. É só ler os comentários sobre o filme no IMDb ou em outras plataformas que isso fica claro. A frustração de Ani de “não poder” lidar com aquilo da forma que precisa causa grandes reviravoltas em sua vida “perfeita”. Ela não quer, ou até não consegue mais, fingir ser o que não é em busca de algo que resolva sozinho seus traumas. 

O que ficou incrível no filme é como conseguiram equilibrar os traumas da história com a tentativa de superação dela. Em nenhum momento o filme olha para Ani com pena, como se ela fosse uma pobre coitada. O roteiro e a direção respeitam a história e o processo de sobrevivência, o que muitas vezes não acontece com filmes e séries que se propõe a falar sobre assuntos tão densos. 

 

Equipe de peso

Uma das razões para isso é uma equipe que não é novata na área. Mike Barker, o diretor, dirigiu vários episódios de O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale), e Colin Watkinson, diretor de fotografia, também foi diretor na mesma série, que também lida com assuntos correlatos. Além disso, o roteiro é assinado por uma mulher, Jessica Knoll, que é também quem escreveu o livro no qual o filme é baseado. Mila Kunis, além de estrelar, também é produtora executiva. 

Além da performance excelente de Mila como Ani adulta, Chiara Aurelia entrega tudo como a Ani adolescente. As duas estão em muita sintonia, e a passagem no tempo foi muito crível. Connie Britton como Dina está insuportável, o que é na verdade um grande elogio à atriz. Para a história funcionar, precisamos sentir na pele o que Ani sente com sua mãe. 

O mesmo é válido para Finn Wittrock com Luke. Estou acostumada a ver Wittrock em papéis de vilão, foi muito interessante vê-lo aqui como um “bom moço” na superfície. No entanto, essa atitude boa-praça ainda machuca Ani, pois como ele já cansou dessa história do passado dela, ela também deveria ter cansado. Essa dualidade “cara de bom moço/falta de compreensão” é algo tão comum que vítimas encontram, seja nas próprias pessoas que as abusaram, seja nas pessoas que encontram na vida depois, e Wittrock entregou essa dualidade com maestria. Você quase concorda com ele, até que não. 

Objetivo cumprido

“Uma Garota de Muita Sorte” consegue, em suas 1h53 de duração, construir uma narrativa de superação que não é fácil retratar. A história começa um pouco lenta, e parece que não sabe para onde vai, mas logo a intenção fica clara. Eu li muitos comentários achando que o filme deveria ter sido uma série, que o tempo foi muito curto e embaralhado para fazer jus aos temas levantados, mas eu, pessoalmente, não concordo. O filme é objetivo em seu caminho e cumpre o que quer cumprir.

Uma série poderia ter sido interessantíssima, claro, mas fica a dúvida se o tempo maior para contar a história não acabaria resultando em mais clichês e superexposições – me lembro aqui de Os 13 Porquês, também da Netflix. Teve todo o tempo do mundo para lidar com assuntos muito similares, e o fez de uma forma muito irresponsável, quase glorificando o sofrimento. Aqui, isso não acontece. Ani é ciente de todos os privilégios que tem, e seu sofrimento não é tratado de forma leviana ou glorificada. O filme poderia ter sido um pouquinho mais longo para dar mais ar para seu terceiro ato, mas ainda assim conseguiu, na minha opinião, entregar o que propôs. 

Como comentário final, acho que o marketing da Netflix desse filme como um suspense acabou prejudicando a expectativa inicial das pessoas, o que talvez tenha causado mais reações negativas do que o filme teria se fosse vendido como o drama pessoal que é. 

Uma garota de muita sorte POSTER Filme: Uma Garota de Muita Sorte (Luckiest Girl Alive)
Elenco: Mila Kunis, Chiara Aurelia, Finn Wittrock, Connie Britton, Justine Lupe, Jennifer Beals
Direção: Mike Barker
Roteiro: Jessica Knoll
Produção: Estados Unidos
Ano: 2022
Gênero: Drama
Sinopse: A vida perfeita de uma escritora começa se despedaçar quando um documentário sobre crimes reais faz com que ela confronte seu angustiante passado no colégio (do site da Netflix).
Classificação: 16 anos
Distribuidor: Netflix
Streaming: Netflix
Nota: 8,5

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