Após um acidente aéreo sem muita explicação, acompanhamos o drama dos sobreviventes em um lugar desconhecido na expectativa de entender o que de fato aconteceu e descobrir como e até mesmo se aqueles personagens conseguirão se salvar. Em boa medida, essa é a trama de Yellowjackets, série que teve sua primeira temporada lançada em 2021 pela Showtime. Ao mesmo tempo, talvez você esteja pensando que também poderia ser a de tantas outras que vieram antes (e que provavelmente ainda virão depois), mas os acertos do arco inicial no drama dessas garotas/mulheres separam Yellowjackets das demais.
A história se passa em dois núcleos temporais. Em um deles, temos as jovens adolescentes que integram o time de futebol feminino da escola que dá nome à série. Já no outro, vemos em que tudo aquilo se transformou mais de duas décadas mais tarde. Porém, apenas quatro daquelas jovens são apresentadas como adultas ao espectador.
Assim, os pontos de interrogação começam a saltar aqui e ali. Porém, tanto o roteiro competente como as ótimas interpretações das atrizes em suas personas adolescentes e adultas – especialmente da incrível Christina Ricci, indicada ao Emmy de melhor atriz coadjuvante em série de drama – cumprem um papel bastante natural de diluir essas inquietações e fazer a audiência querer profundidade ao invés de satisfação imediata.
Um legado para honrar ou redimir
A verdade é que, em meados dos anos 2000, a forma como assistimos às séries de TV mudou para sempre com a estreia de Lost. Nela, o espectador também acompanhava o drama de sobreviventes de um acidente aéreo perdidos em uma ilha.
Contudo, o que essa história trazia de novo mesmo era o sem-fim de mistérios que ia se amontoando a cada novo episódio. De fato, a série apresentou ao mundo o conceito de “mystery box”, técnica narrativa em que um grande mistério inexplicável é visto logo no início e faz com passemos o resto do tempo esperando por respostas.
Esse formato, imaginado pelo autor e diretor J. J. Abrams, tem um poder enorme de prender a audiência, mas Lost serviu para provar que o “mystery box” também tem falhas. Depois de deixar todos sentados na pontinha do sofá, contando os dias para o próximo episódio ao longo de seis temporadas, a série terminou em 2010 com um desfecho que frustrou muitos fãs na mesma medida em que os havia cativado lá atrás.
No caso de Yellowjackets, talvez ainda seja cedo para falar. Porém, a série, que teve uma segunda temporada confirmada ainda antes de exibir todos os episódios da primeira, parece ter a abordagem necessária desse modelo para não repetir os erros de sua antecessora.
Misteriosa, mas nem tanto
Uma pesquisa rápida sobre Lost na internet rende resultados como “qual é o sentido de Lost?”, “qual é a verdadeira história?” e até os taxativos “por que o final é tão ruim?” ou “você entendeu o final errado”. A verdade é que, mesmo com todos os aspectos inexplicáveis e até sobrenaturais que cercavam a ilha, a real intenção da trama era refletir sobre os dramas pessoais dos sobreviventes, seus passados e seus possíveis futuros. Afinal, eram pessoas que não se conheciam atiradas em uma situação extrema em que deviam colaborar. Ainda assim, os mistérios roubaram o foco e acabaram sufocando todo o resto.
Não por acaso, há quem diga que o ”mystery box” não funcione exatamente porque tudo que importa é a solução. Assim, depois que ela é apresentada, o interesse se perde. Talvez Yellowjackets seja a prova de que não é bem por aí. Sim, os mistérios estão lá. Mais do que isso, a primeira cena honra esse modelo narrativo com um acontecimento gigantesco que faz o espectador sentir que vai ser assombrado dali em diante até descobrir o contexto de tudo.
No entanto, na medida em que os 10 episódios de sua temporada de estreia avançam, o que temos é um cuidado enorme dos criadores Ashley Lyle e Bart Nickerson em apresentar cada nova reviravolta na trama de forma gradativa. Diferente dos “flashbacks” e “flashforwards” que marcaram Lost, Yellowjackets não usa a alternância entre a luta das adolescentes para sobreviver ao acidente e suas vidas adultas assombradas por memórias e novos acontecimentos ligados ao passado como forma de quebrar a narrativa.
Aqui, os tempos servem mais de forma complementar do que disruptiva. Mais do que isso, tudo é tão bem equilibrado com os conflitos pessoais de cada personagem que, ainda que o espectador queira desvendar mistérios, isso nunca se torna maior que o desejo de entender como cada uma daquelas mulheres chegou até o momento atual.
Por outro lado, essa mistura de passado e presente, de experiências libertadoras e massacrantes, nos faz lembrar que a memória pode ser um mecanismo complexo e que, aliada ao medo e à incerteza de situações extremas, nem sempre é tão confiável quanto parece, fazendo com o que o real e o sobrenatural se confundam de forma quase orgânica na trama.
Mulheres que correm com os lobos
Essa sensação não se dá por acaso, afinal, o que temos é um time de futebol adolescente feminino inteiro em cena em boa parte da trama. Como é comum a qualquer um nessa fase da vida, tudo parece mais extremo, seja bom ou ruim. Ainda assim, diferenças e confusões individuais à parte, elas dividem o objetivo de triunfar como equipe. Além disso, a narrativa deixa bem claro que elas são as estrelas ao mostrar que o time masculino da escola local não tem o mesmo potencial.
No entanto, quando estão prestes a alcançar o ponto mais alto da trajetória esportiva escolar, o acidente aéreo que as deixa por um ano e meio perdidas em uma floresta em algum lugar desconhecido dos Estados Unidos coloca em xeque essa frágil união definida pelas cores de um time.
Na verdade, aqui eu não sou a pessoa indicada para falar com propriedade, não é meu lugar de fala. Ainda assim, é gostoso ver como Yellowjackets é apenas sobre aquelas mulheres. Em outras palavras, o masculino, presente em seus treinadores, amigos e interesses amorosos, senta-se no banco do passageiro enquanto elas é que dirigem.
Trazendo um exemplo recente de história focada em mulheres, O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) ainda tem personagens masculinos com muito poder por motivos óbvios. Contudo, em alguns pontos, esse poder parece ofuscar a agência das mulheres que protagonizam a narrativa. Isso não acontece em Yellowjackets.
Para aquelas jovens, só existe o contato cada vez maior com suas raízes ancestrais, livres do viés social e dos conflitos do ambiente escolar e da adolescência em si. Cabe a elas lidarem com a liberdade de sobreviver como podem enquanto mulheres em um lugar selvagem, entendendo seus corpos, suas capacidades e desenvolvendo um elo maior que, ao que tudo indica, vai sobrepujar as simples cores de um time de futebol.
Ao mesmo tempo, duas décadas depois, temos Shauna (Melanie Lynskey, premiada como melhor protagonista pelo papel), Taissa (Tawny Cypress), Natalie (Juliette Lewis) e Misty (Christina Ricci), as remanescentes do time, tendo que sobreviver a uma sociedade patriarcal à sombra desse passado.
Em entrevistas, os responsáveis pela série disseram que ainda que existam planos para um arco de cinco temporadas, o objetivo é manter o foco ano a ano, entregando o melhor conteúdo de cada vez e vendo como o público reage. Não tenho dúvida de que, em um nível pessoal, a experiência de assistir a Yellowjackets seja diferente para homens e mulheres, mas a narrativa traz os elementos necessários para gerar conexão com qualquer um disposto a isso. De qualquer forma, para ambos, o que temos até aqui é, no mínimo, entretenimento de qualidade, do tipo que deixa o espectador angustiado quando chega ao fim dos episódios disponíveis.
Série: Yellowjackets (1a temporada) Elenco: Melanie Lynskey, Tawny Cypress, Juliette Lewis, Christina Ricci, Ella Purnell, Sophie Nélisse, Jasmin Savoy Brown, Sophie Thatcher, Samantah Hanratty, Steven Krueger, Kevin Alves, Liv Hewson, Courtney Eaton, Jane Widdop, Warren Kole Desenvolvedor: Ashley Lyle e Bart Nickerson Roteiro: Ashley Lyle e Bart Nickerson Produção: Estados Unidos Ano: 2021 Gênero: Drama, Terror, Mistério, Suspense Sinopse: Talentosas jogadoras de futebol escolar se transformam em clãs selvagens depois de sobreviverem a um acidente de avião nas remotas florestas do norte dos Estados Unidos. Vinte e cinco anos mais tarde, elas descobrem que o que começou na mata está longe de terminar. Classificação: 16 anos Distribuidor: Paramount+ Streaming: Prime Video Nota: 7,5 |
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