27° CINE PE – Dia 02 (Curtas)

27° CINE PE – Dia 02 (Curtas)

DEPOIS DE UM SONHO, de Ayodê França

Principalmente, baseado na experiência de um jovem pernambucano de 24 anos, que é o autor deste texto, as sessões da Mostra Competitiva Pernambucana de Curtas-Metragens sempre foram as minhas favoritas no Cine PE, desde os tempos em que eu era apenas um garoto frequentando o São Luiz, que agora completa 71 anos em 6 de setembro. As estreias sempre tiveram um lugar especial, especialmente em um festival que há 27 anos vem destacando filmes com uma forte identidade pernambucana e proporcionando visibilidade a cineastas no palco do Teatro do Parque. Nesta edição do festival, o destaque foi para a estreia de dois curtas-metragens: “Depois do Sonho,” dirigido por Ayodê França, e “Invasão ou Contatos Imediatos do Terceiro Mundo,” dirigido por Hugo Aquino e Maria Gazal. O filme ao qual dedico este texto é “Depois do Sonho,” uma animação com elementos experimentais que nos leva a uma jornada na imaginação de uma criança negra.

Desde o início do filme, somos convidados a adentrar a mente da criança, enquanto ela brinca em seu quarto colorido. Este quarto serve como uma espécie de portal para o seu mundo interior, lembrando-nos do filme “Divertida Mente.” No entanto, ao contrário das abordagens tradicionais da Disney, “Depois do Sonho” utiliza cores vibrantes e uma personagem que se funde com o cenário, criando uma experiência repleta de mudanças de cenários e tons cromáticos. Após explorarmos esse universo exclusivo da criança, somos transportados de volta à realidade, onde temos locais de vigilância e restrições, como uma escola. As cores vibrantes dão lugar a tons pastéis, e a atividade corporal intensa cede espaço a uma realidade mais estática, ou seja, estamos na vida real. 

Ao testemunhar o encontro de diferentes perspectivas entre os adultos e a criança que persiste em expandir sua visão dentro desse ambiente monótono, torna-se evidente a vulnerabilidade do corpo adulto em lidar com tentativas de fuga das correntezas, embora essas correntezas agora sejam de natureza não física, mas sim ligadas a antecipações mentais. 

A beleza desta animação pernambucana reside, em grande parte, na presença negra e periférica que a conduz, adquirindo novos significados à medida que a protagonista atravessa tanto momentos de sucesso quanto desafios em sua jornada. A preferência por permanecer imóvel na trama harmoniza com o ambiente urbano peculiar, muitas vezes opressor para seus personagens, que não oferece espaço para um diálogo que permita escapar de padrões de comportamento ou práticas estabelecidas. 

No entanto, de forma comovente, a protagonista retorna ao ambiente escolar e sai de seu quarto mais uma vez. Em contraste com as críticas negativas em forma de placas animadas que ela presenciou, seus colegas de classe agora a recebem com objetos de representação, como seu chapéu, que inicialmente fora rejeitado. Os sorrisos de seus colegas geram curiosidade em sua expressão, revelando uma nova camada de significado na obra, pois estamos diante de um sorriso negro na realidade.

Por Wandryu Figuerêdo

 

INVASÃO OU CONTATOS IMEDIATOS DE TERCEIRO MUNDO, de Hugo Aquino e Maria Gazal

O curta-metragem “Invasão ou Contatos Imediatos de Terceiro Mundo” é uma obra que hábil e ousadamente mescla elementos de ficção e documentário. Partindo da premissa de uma invasão de OVNIs em Recife, o repórter Paulo César Freire empreende uma jornada pelas ruas da cidade, buscando a perspectiva da população diante do desconhecido. Uma das questões que ressoa durante o filme é: O que significa uma invasão para você?

O curta se divide em dois momentos. No primeiro deles, somos levados a uma série de entrevistas com a população, uma combinação cuidadosa de ficção e documentário, com um toque sutil de humor que permeia toda a produção. O mérito dessa parte está na excelente montagem, que intercala respostas confusas, muitas vezes desvinculadas das perguntas do repórter. É uma obra que, de maneira habilidosa, brinca com elementos da linguagem cinematográfica ao alternar a razão de aspecto da tela e nos revelar os bastidores da produção em meio às entrevistas. Através de sua abordagem astuta, o filme nos lembra constantemente que estamos assistindo a uma produção cinematográfica. Mesmo apresentando entrevistas com pessoas reais, a inclusão de discos voadores claramente fictícios reforça essa quebra de expectativas. Por se tratar de entrevistas, fatalmente o curta vai trazer alguns entrevistados que pouco contribui para a experiência, como no caso do porteiro.

No segundo momento, “Invasão ou Contatos Imediatos de Terceiro Mundo” mergulha em um território mais sério. É aqui que a trama se desloca para uma das ocupações do Movimento Urbano dos Trabalhadores Sem Teto (MUST). Com maestria, o filme capta a atenção do espectador, revelando a realidade de uma população marginalizada e invisível, negligenciada pelas autoridades competentes. Um dos momentos mais interessantes ocorre quando um garoto, residente da ocupação, é questionado sobre seu futuro, e sua resposta é surpreendente: ele quer ser policial. Quando indagado se a polícia já ajudou na comunidade, ele responde, com certo constrangimento, que não.

“Invasão ou Contatos Imediatos de Terceiro Mundo” é uma obra cheia de camadas, que, por meio de uma abordagem perspicaz, nos convida a refletir sobre o que significa invasão, inclusão social e transformação. Combinando com maestria o humor com a seriedade das questões sociais.

E, ao partir da premissa inicial da invasão de OVNIs, o filme cria uma situação absurda e fantasiosa que, de certa forma, espelha o absurdo das condições sociais enfrentadas por comunidades marginalizadas e negligenciadas, destacando a desconexão entre a realidade enfrentada por essas comunidades e as preocupações fictícias de uma invasão alienígena.

Por Hugo França

 

ELES NÃO SÃO ESTRANGEIROS, de Pedro Bughay

Reproduzido e registrado no Rio Grande do Sul, o filme “Eles Não São Estrangeiros”, sob a direção de Pedro Bughay Aceti, teve sua estreia perante um amplo público durante a 27ª edição do Cine PE. Durante a abertura da Mostra Competitiva de Curtas, o diretor subiu ao palco e proferiu um discurso significativo abordando a persistência da extrema direita, ainda presente em algumas regiões do sudeste. Suas palavras ressoaram pelo ambiente, oferecendo uma perspectiva para refletir sobre outra faceta da realidade brasileira, a qual também lança luz sobre aspectos de Pernambuco, incluindo suas oscilações políticas, manifestadas em regiões mais abundantes, como Boa Viagem. 

A obra inicia com imagens de arquivo, mostrando os chamados ‘bolsozap’ e outros vídeos curiosos de ‘’manifestações’’ ocorridas em um Brasil ainda sob o governo de Bolsonaro. É interessante observar a criatividade na manipulação dessas imagens de arquivo, que não apenas interagem com o material cinematográfico, mas também preservam um registro duradouro desses eventos. O fato de a história se desenrolar no Rio Grande do Sul acrescenta uma nova dimensão à narrativa, uma vez que, em muitas ocasiões, os sulistas, especialmente durante anos eleitorais nacionais, afirmam não se considerarem brasileiros e, por vezes, insultam o povo nordestino. Nossa protagonista está inserida em um mundo em colapso, semelhante ao ano de 2020, quando não tínhamos certeza sobre como conter a disseminação do Coronavírus. Sua maior arma é demonstrar seu orgulho de ser brasileira e não esconder um dos sobrenomes mais frequentes, o Silva. 

Para deter as criaturas em busca de carne ou poder, ela exclama “Silva”, fazendo com que elas se detenham ou voltem ao normal. O curta mantém essa abordagem irônica para simplificar seu tema central: os sulistas que ocultam suas identidades brasileiras, africanas, indígenas e afrodescendentes em prol da adoção de culturas predominantemente brancas, europeias e masculinas. Além disso, sua forma é intrigante, especialmente nas caracterizações que criam uma falsa sensação de realismo. Similar a “Barbie”, “Eles Não São Estrangeiros” aborda sua narrativa de maneira direta em alguns aspectos, por vezes deixando de incorporar elementos tanto modernos quanto clássicos do cinema.

O Cine PE incluiu “Eles Não São Estrangeiros” em sua programação para destacar que nem todos os habitantes do sul do Brasil aderem ao comportamento bolsonarista. Alguns optam por expressar suas discordâncias por meio do sarcasmo, da ironia e através de uma protagonista que usa apenas sua voz como arma. E sim, você é Brasileiro sim! Seu sangue tem cor preta, indigena e africana, espero que tenham compreendido. 

Por Wandryu Figuerêdo

 

QUINTAL, de Mariana Netto

O curta baiano “Quintal”, fruto do primoroso trabalho do MIRÁ: Núcleo de Animação da Escola de Belas Artes da UFBA, é um achado estético que merece nossa atenção. Inspirado na poesia de Manoel de Barros, especificamente em “Tributo a João Guimarães Rosa,” a obra mergulha de forma delicada e perspicaz nas complexidades do nosso mundo contemporâneo, tão assolado pelas diversas formas de poluição.

Logo de início, somos envolvidos por uma sinfonia encantadora, onde uma flauta, habilmente tocada por uma menina, se harmoniza com o canto de um pássaro. O filme é uma verdadeira festa visual, com sua estética que se destaca por contrapor a exuberância de um quintal florido à monocromia e poluição da cidade circundante. Entretanto, o aspecto sonoro é igualmente impactante. O início sereno, marcado pelo canto do pássaro, é abruptamente interrompido pelo ruído ensurdecedor dos carros, motores, buzinas, latidos e sirenes da cidade, que gradualmente se amalgamam em um estridente e dissonante “remix” sonoro, capturando com maestria o caos das demandas cotidianas.

Embora o curta se destine, em parte, ao público infantil, sua mensagem ambientalista ressoa com contundência junto ao público adulto. A narrativa mantém uma abstração cuidadosamente equilibrada, mantendo o foco na mensagem central de contraposição entre a poluição urbana e a beleza da natureza.

A técnica empregada na animação merece destaque, como a cativante marcha das formigas e o poder transformador da música, que liberta o pássaro da gaiola. A metáfora da flauta desafinada, ecoando um mundo em desarmonia, é exuberante. Quando a flauta se ajusta, o pássaro é libertado, uma alegoria emocionante do equilíbrio restaurado. No entanto, a mensagem por vezes direta pode, em determinados momentos, conferir ao curta uma sensação de propaganda, lembrando as iniciativas do Greenpeace. Embora importante, essa abordagem pode diluir a profundidade da experiência.

“Quintal”, portanto, é uma animação que se destaca por sua competência técnica, beleza visual e inteligência na abordagem de questões ambientais. É um convite para refletir sobre a nossa relação com a natureza e a necessidade urgente de restaurar o equilíbrio em nosso mundo poluído.

Por Hugo França

 

ESSA TERRA É MEU QUILOMBO, de Rayane Penha

“Essa Terra é Meu Quilombo”, curta documentário amapaense, se concentra nas vivências e sabedorias ancestrais de gerações de mulheres negras em três quilombos urbanos no Amapá. A produção oferece um olhar íntimo sobre essas comunidades, explorando sua relação intrínseca com a terra, desde a agricultura até as práticas de cura com plantas, enquanto também aborda temas críticos como luta, resistência e a ligação familiar com a terra que sustenta suas vidas.

O documentário adota uma abordagem direta e autêntica, sem artifícios cinematográficos extravagantes ou montagens criativas. É uma câmera voltada para mulheres que desejam compartilhar suas histórias com o mundo, histórias que frequentemente são sub-representadas nas telas do cinema. No entanto, a sensação de que o filme não consegue explorar profundamente esses temas críticos de maneira eficaz é notável. A falta de tempo para uma identificação mais profunda com as três mulheres entrevistadas e a transição abrupta entre os assuntos podem causar uma desconexão no espectador.

O documentário, em alguns momentos, parece mais uma reportagem do que uma exploração cinematográfica aprofundada. No entanto, é inegável a importância de dar voz a essas mulheres e suas comunidades, destacando questões cruciais como o abandono de serviços essenciais, como saúde, educação e transporte, que impactam diretamente suas vidas. “Essa Terra é Meu Quilombo” serve como um lembrete essencial de que essas vozes autênticas merecem espaço e visibilidade no cenário cinematográfico, mesmo que o tempo e o formato do documentário não permitam uma imersão mais completa em suas histórias.

Por Hugo França

 

MOVENTES, de Jefferson Cabral

Em 2023, as discussões sobre o armazenamento de arquivos na era contemporânea estão em voga. Se antes tínhamos desafios para preservar eventos em elementos tangíveis, como fotografias, hoje dispomos de dispositivos que podem capturar tudo, embora esses registros possam ser facilmente descartados ou perdidos no mundo digital. Neste contexto, o filme “Moventes” se destaca, pois é inteiramente composto por imagens de arquivo e narra a história de uma família que decide deixar uma pequena cidade no Rio Grande do Norte em busca de novas oportunidades em São Paulo. Embora seu enredo não se diferencie muito de outras histórias, a abordagem de Jefferson Cabral, diretor do filme, ao conduzir a narrativa por meio das imagens adiciona novas dimensões, revelando não apenas a beleza do que foi, mas também daqueles que permaneceram na cidade. 

A perspicácia da câmera começa por explorar os ambientes mais íntimos, como um almoço, capturando detalhes minuciosos. O tratamento do som é notável, proporcionando uma ambientação perfeita, fazendo com que o espectador se sinta imerso em cada som que permeia as paisagens regionais ao longo do filme. Após um período, o voice-over adentra em cena, mas nada como um invasor na dimensão imagética ou sonora, mas como um aliado para explorar todos aqueles arquivos em combinação através de uma montagem.

Dentro desses espaços filmados, frequentemente interligados com a narração de uma história simples, porém impactante, o que se destaca são as práticas cotidianas e as mudanças temporais. Os rastros deixados pelas pessoas que partiram parecem notáveis, como se tudo estivesse mais movimentado antes, e o vazio atual só existisse devido à partida de muitos desses indivíduos. Há até mesmo um certo tom de abandono em sua narrativa, que lança luz sobre as condições de mudança que se fizeram necessárias, não apenas para seu pai, mas também para ele mesmo.

Próximos e, ao mesmo tempo, afastados, somos envolvidos pelas águas, os ventos e até mesmo pelas vozes das crianças que talvez se tornem futuros viajantes. No desfecho, a imagem da porta e do garoto cria uma metáfora para um contato desconhecido, indicando a possibilidade de uma partida distante daquela cidade que, apesar de gerar medo, também representa um passo em direção a um novo começo.

Por Wandryu Figuerêdo

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