27° CINE PE – PORTO PRÍNCIPE

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Em um cenário idílico da serra catarinense, “Porto Príncipe” nos transporta para uma jornada intimista repleta de contrastes culturais e solidões compartilhadas. O filme nos leva à serra catarinense para explorar a vida de Bertha, uma viúva que reside sozinha em sua chácara e, sentindo necessidade de ajuda no sustento da chácara, contrata Bastide, um refugiado haitiano para lhe ajudar. Essa decisão escancara uma série de conflitos com seu filho, Henrique, que não admite a mãe morar sozinha com Bastide.

Desde o início, Bastide é retratado como uma figura reclusa, frequentemente perdido em seu mundo, com fones de ouvido que o isolam do ambiente. Sua relutância em interagir com outros haitianos parece representar suas memórias dolorosas do Haiti. Uma cena em um ginásio, onde ele evita uma conversa com um compatriota, é particularmente reveladora, com o desfoque visual enfatizando sua tentativa de escapar das lembranças dolorosas. Bertha, por sua vez, é introduzida como uma mulher solitária, que busca conforto na leitura e na música clássica. O filme habilmente captura sua solidão através de imagens de fotos de outras pessoas na casa, sugerindo que aquele espaço já foi mais preenchido. A casa de Bertha serve como metáfora de sua própria identidade, e sua recusa em deixá-la de modo categórica, depois da insistência do filho, é uma afirmação de sua história e memórias.

Porto Príncipe, ao reunir esses dois personagens distintos, tece uma trama que revela as nuances da relação entre eles. Bertha, consumida pela solidão, responde ao anúncio da chegada dos haitianos e decide oferecer emprego a um deles. Bastide, por sua vez, ansioso por escapar das lembranças que assombram seu espaço de origem, aceita a proposta de Bertha e a acompanha até sua chácara. A diretora, Maria Emília de Azevedo, começa a esboçar a construção de uma amizade entre esses dois protagonistas, mas nunca deixa de evidenciar as nuances da relação entre patrão e empregado. Isso fica nítido em uma cena marcante em que Bertha reclama quando Bastide corta algumas flores.

Abordando a evolução dessa amizade com maestria, a diretora, através da mise-en-scene, gradualmente aproxima os dois no quadro a cada conversa que compartilham e sutilmente altera seus figurinos. Inicialmente, suas roupas são marcadas por cores diferentes, mas à medida que a amizade se fortalece, as cores se harmonizam. Contudo, o filme nunca deixa de salientar que Bastide permanece um estrangeiro, sempre visto como diferente etnicamente, como na cena do supermercado, em que este se camufla nas cores do ambiente, tornando-se quase invisível. Apesar da técnica eficaz de Maria Emília de Azevedo, Porto Príncipe não mergulha completamente nos temas sensíveis que ensaia tocar. Em um momento revelador, Bertha faz uma comparação cínica entre as dificuldades enfrentadas por seus antepassados alemães e os de Bastide, expondo um preconceito em seu caráter. Como se as dificuldades de ambos fossem sequer comparáveis, algo que constantemente é ensaiado por setores da classe média brasileira. Toda aquela doçura de Bertha é agora não consegue  mascarar sua falta de compreensão das disparidades de privilégio entre ela e os imigrantes haitianos.

Sendo assim, Bertha apresenta camadas interessantes a serem exploradas, mas infelizmente, a sutileza se perde em uma discussão posterior entre ela e Bastide sobre o mesmo tema. Bastide expõe o absurdo da comparação, mas é a diretora Maria Emília de Azevedo quem grita essa mensagem, através dele. Isso fica evidente na forma como a cena é conduzida, e a sutileza é substituída por um tom mais didático. Este é um dos pontos em que Porto Príncipe se acovarda e perde a oportunidade de explorar plenamente seu potencial. O longa revela uma certa timidez ao abordar suas questões centrais, muitas vezes abandonando-as ou tratando-as de maneira superficial e clichê. Um exemplo disso é quando Bastide deixa a chácara e passa um período vivendo nas ruas, onde é brutalmente agredido por um grupo de pessoas brancas, cujo adesivo de carro exibe a frase “Jesus te ama” – uma clara referência à hipocrisia de certos grupos que pregam o amor, mas agem movidos pelo ódio. Contudo, essa cena é inserida de maneira jogada sem qualquer contexto com o filme.

Outro momento em que o longa se acovarda é quando Bastide reencontra Bertha e, de forma surpreendente, a perdoa, relegando completamente o contexto que poderia ter sido mais profundamente explorado na narrativa. A redenção de Bertha, promovida por Maria Emília de Azevedo, enfraquece consideravelmente a complexidade do dilema levantado até então e trata o erro da personagem como algo de pouca importância. Nesse sentido, “Porto Príncipe” se mostra uma decepção ao se contentar em ser um filme agradável que explora a amizade entre duas pessoas de diferentes culturas e gerações, optando por abordar questões mais sensíveis através de clichês, como a vilania de personagens como Bertha e Henrique, bem como a cena em que Bastide sofre agressão nas ruas, em vez de explorá-las de forma mais aprofundada e contextualizada.

Sendo assim, Porto Príncipe parece hesitar em aprofundar suas questões temáticas e apresenta uma construção de personagens que deixa a desejar em alguns aspectos. Henrique, por exemplo, é um personagem totalmente estereotipado, apesar do esforço de Leonardo Franco em suavizar seu desenvolvimento. Bertha, desempenhada de maneira excepcional por Selma Egrei, não consegue cumprir totalmente as expectativas geradas. Bastide, por outro lado, é a personagem que recebe o tratamento mais profundo, representando de forma vívida o sentimento de deslocamento que muitos refugiados enfrentam, à medida que aos poucos se liberta e se adapta a seu novo ambiente.

Consequentemente, o filme destaca-se principalmente pela brilhante inclusão de músicas haitianas em sua trilha sonora, que acrescentam uma profunda dimensão emocional à narrativa. Além disso, enfoca-se na relação que gradualmente se desenvolve entre Bertha e Bastide durante o segundo ato, embora não seja necessariamente um elogio.


Filme: Porto Príncipe
Elenco: Diderot Senat, Selma Egrei, Léo Franco e Mónica Siedler.
Direção: Maria Emília de Azevedo
Roteiro: Marcelo Esteves
Produção: Brasil
Ano: 2023
Gênero: Drama
Sinopse: Bertha é viúva e mora sozinha numa chácara isolada na serra catarinense. Começando a enfrentar dificuldades para manter a propriedade funcionando, Bertha vive pressionada pelo filho que deseja que ela vá morar com ele em um bairro nobre de Florianópolis. Ao saber da chegada de um grupo de haitianos em Santa Catarina, Bertha decide trazer o haitiano Bastide para trabalhar e morar com ela, alimentando a hostilidade de seu filho. O convívio transforma a relação de trabalho entre Bertha e Bastide em uma relação de amizade sincera entre duas pessoas de culturas diferentes que compartilham ideias e sentimentos comuns.
Classificação: Livre
Distribuidor: Cafeína Produções
Streaming: Indisponível
Nota: 5,0

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