47ª MOSTRA SP – LOS COLONOS

47ª MOSTRA SP – LOS COLONOS

Em seu filme de estréia – Los Colonos –, Felipe Gálvez Haberle adapta o faroeste clássico americano para o contexto da América do Sul ao abordar o processo de colonização, demarcação indiscriminada de terras e genocídio dos povos originários no Chile. Na história, acompanhamos o tenente escocês Alexander MacLennan (Mark Stanley), o norte-americano caçador de indígenas Bill (Benjamin Westfall) e o mestiço chileno Segundo (Camilo Arancibia) viajando pelo Chile e Argentina numa missão dada por José Menéndez (Alfredo Costa), um rico proprietário de terras, de demarcar os limites de suas propriedades e traçar uma rota segura até o Oceano Atlântico. Porém essa jornada ganha contornos violentos quando ela assume um caráter de “civilizar” os povos da região a partir do entendimento de que “o problema são os índios”, como é pontuado em um diálogo entre colonizadores.

Em muitos momentos os povos originários são chamados de animais, selvagens e subdesenvolvidos pelos homens brancos da região, ao mesmo tempo que seus corpos são fetichizados e seus costumes e Deuses desvalorizados (os matando caso não aceitassem o que era imposto). O diretor, por sua vez, traz uma visão que contrasta exatamente com estas declarações e retrata os colonizadores da forma mais primal e animalesca possível. Eles fazem demonstração de força para verem quem é o mais dominante, estupram mulheres e matam a sangue a frio (inclusive os seus e crianças). Há uma cena em específico, em que os três protagonistas tomam banho no mar. Ela pode aparentar um tanto deslocada, mas é nesta passagem que podemos ver de forma mais nítida essa ironia funcionando visualmente. Pois enquanto Segundo, o personagem que demonstra maior senso de humanidade, toma banho normalmente, Bill e MacLennan batem no peito estufado, jogam água para cima e emitem sons de primatas. 

Em paralelo, o diretor também pega emprestado discussões acerca da masculinidade presentes nos faroestes modernos, como Ataque dos Cães, com o intuito de desconstruir ironicamente esses “macho mens” – que obrigam agressivamente Segundo a estuprar uma mulher, por exemplo. Desde o início esse subtexto fica latente para o telespectador – tal qual o tom homoerótico de O Clube da Luta – até que dois personagens realmente transam “no sigilo”. Considero realmente brilhante toda a construção dessa atmosfera homoerótica a partir das diversas demonstrações de virilidade, que não parecem ser naturais e intrínsecas do ser humano (numa necessidade de autoafirmação), e do desenvolvimento de personagens frívolos até o ato sexual materializado com certo delicadeza em contraste com a brutalidade dos homens chucros.

É notável até aqui que o olhar irônico de Haberle é uma ferramenta muito bem utilizada para levantar discursos através do contraponto. Em algumas ocasiões até levando o público ao riso. Contudo, é mais importante ainda pontuar que o diretor assume uma ótica respeitosa ao narrar um período tão cruel, que se repetiu em todos os cantos das Américas: o genocídio dos povos indígenas. Por mais que Los Colonos seja um filme violento, a violência não ganha espaço para ser espetacularizada a partir de um ponto de vista tarantinesco (ainda que a divisão em “capítulos” remeta diretamente a linguagem do diretor). 

Não há jorros de sangue, cenas de estupro (ainda bem os diretores começaram a ter mais sensibilidade em não colocar isso em tela) e decaptações. A violência se esconde em Los Colonos, o que não quer dizer que não exista (ou existiu). Não mostrá-la aqui ganha ainda mais significância porquê essa escolha criativa representa como a violência também se escondeu em meio a história latino-americana, que nunca buscou qualquer tipo de reparação ou discutir abertamente sobre esta mancha de sangue visível que a narrativa histórica e política esconde e não aborda com a frontalidade necessária.

Por sina, a fotografia de Simone D’Arcangelo se faz essencial para conferir este equilíbrio da ironia narrativa com a poesia visual. Em muitos casos elas atuam juntas como na forma em que a aventura é filmada: a partir de planos gerais que mostram a vastidão da área que Menéndez quer chamar de sua ao mesmo tempo que criam imagens contemplativas lindíssimas que exaltam a beleza natural do Chile – os pastos, o mar, a cordilheira, os nativos… Uma fotografia que nos coloca distante destes homens, mas se aproxima num momento chave da trama Kiepja (Mishell Guaña), como se estivesse apontando para quem deveríamos direcionar a empatia e nos colocando para encarar o “problema” do apagamento histórico e da forma leviana em que geralmente esses casos são tratados atualmente.

Ficou claro o porquê de Los Colonos ter sido o escolhido para representar o Chile no Oscar. O longa competia com outros diretores mais consagrados e conhecidos — a documentarista Maite Alberdi com A Memória Infinita e o favorito O Conde, dirigido por Pablo Larraín e distribuição da Netflix — e mesmo assim foi a produção do diretor estreante que conseguiu a nomeação, surpreendendo a todos pela sensibilidade que toca em temas fortes através de uma abordagem familiar o suficiente para conquistar os votantes norte-americanos do Oscar, o que pode facilitar a sua entrada na cobiçada vaga de apenas 5 filmes.


Poster - Los Colonos Filme: Los Colonos
Elenco: Mark Stanley, Camilo Arancibia, Benjamin Westfall, Mishell Guaña, Alfredo Castro, Marcelo Alonso e Agustín Rittano
Direção: Felipe Gálvez Haberle
Roteiro: Felipe Gálvez Haberle e Antonia Girardi
Produção: Chile, Argentina
Ano: 2023
Gênero: Faroeste, Drama
Sinopse: Chile, 1901. Um rico proprietário de terras contrata três homens para demarcar o perímetro de sua propriedade e abrir um caminho para o oceano Atlântico através da Patagônia. A expedição, composta por um jovem mestiço chileno, um mercenário americano e um imprudente tenente britânico, logo se transforma em uma incursão “civilizadora”.
Classificação: 18 anos
Distribuidor: MUBI
Streaming: Indisponível
Nota: 8,5

*Filme assistido na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo*

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