5  CASAS

5 CASAS

“Meu celeiro pegou fogo e agora posso ver a lua”, diz um ditado japonês. No filme documentário “5 Casas”, Bruno Gularte Barreto retoma a memória guardada em uma dependência antiga e destelhada da fazenda dos seus avós na pequena Dom Pedrito, cidade no interior do Rio Grande do Sul, que há anos ele havia deixado em decorrência da morte dos seus pais. Ao voltar à sua cidade natal, Bruno retorna à escola que há muito tempo não visitava, se aproxima de pessoas, relembra histórias e afetos que nem por todos os anos que virão ele conseguirá intimamente se distanciar.

É através das imagens que conquistamos a ilusão, ou não, do movimento. A partir do movimento, surge outra ilusão: a narrativa. Delas, enfim, nascem nossas percepções. Se visto assim, algo se camufla, faz-se imperceptível, embora gritante, fundamental, implícito. Sabe-se que essas imagens perpassam uma câmera e suas subjetivas lentes. Agora, se por trás dessa câmera, dessa lente, da “objetiva”, há um olhar atento, as imagens não compreenderão e refletirão apenas a camada explícita e palpável do que se mostra. Se por trás dessas lentes há um olhar atento, a Fotografia penetra. Bruno Gularte, diretor, roteirista junto com Vicente Moreno e personagem do filme “5 casas”, antes de lançar-se na realização do seu primeiro filme, já dedicava-se à fotografia e é através dela que ele conta essa história.

Quem tem familiaridade com a parte técnica do cinema sabe: a luz é mentirosa. Citarei um exemplo dado por Walter Carvalho. Numa cena, se uma personagem acende um abajur, ela não acende o abajur. Com isso ele quer dizer que a luz que chega para o público raramente será apenas a luz do abajur. Há toda uma estrutura cheia de estudos, ideias, conceitos e técnicas por trás. A luz que ilumina o dia, arromba as janelas, faz perceptível o tom da tez, é trabalhada, induzida, rebatida. E isso poderia servir muito bem para nos fazer elucubrar sobre o cinema, suas facetas e essências. Afinal, todo o clarão que perpassa as lentes e chega aos olhos finais pode ser resumido como uma invenção. E o mais importante é que não se pode esquecer que isso está, queiramos ou não, presente também no que chamamos de documentário, caso de “5 Casas”, que também é uma auto-ficção. Mesmo num documentário, é importante saber criar e aceitar que talvez Fellini estivesse levemente equivocado ao afirmar que o realismo empobrece a criatividade (vide Everlane Moraes).  Me refiro aqui ao realismo no sentido de reprodução, transparência. Talvez o que é incomum tenha sido insuspeito para Bruno Gularte Barreto. Sendo assim, essa certamente foi sua maior vitória.

Novamente, quem tem familiaridade com a parte técnica do cinema ou por qualquer razão já esteve presente num set de filmagens, sabe que geralmente a pessoa quem dirige, para enxergar melhor o todo da cena e julgá-la, faz uso de um equipamento chamado “video assist” que basicamente é um monitor. Entre a cadeira da direção e a cena com sua aura intocável, ou não, existem fios, equipamentos, pessoas e, no pior dos casos, um mundo. Em “5 Casas”, percebe-se que nem figura nem literalmente existe qualquer distância entre Bruno e as outras personagens.

Com Rodier percebemos a misoginia na evolução sempre gradual, embora nem sempre lenta, da violência nas agressões que escondem a hipocrisia e falso respeito/aceitação e culminam na homofobia descarada e impune porque é consentida pelas pessoas que assistem caladas. Maria Miranda nos lembra que a misoginia é mesmo pilar fundamental do Ocidente e fundamenta o capitalismo que, no seu caso, mostra-se facetado de especulação imobiliária. Ao fundo de ambas histórias, há o que na história do Brasil infelizmente faz questão de não faltar: racismo. A misoginia se mostra mais uma vez através da submissão intelectual exigida pelas religiões, sobretudo, como é o caso, das cristãs. Sofremos com a Irmã Amélia. Ao fundo desse cenário, há a névoa do agrotóxico causando incontáveis casos de câncer em pessoas moradoras da região.
Há retratos mais tragicamente comuns e fiéis a parte significativa da história do Brasil?

“5 Casas” tem qualidades técnicas inegáveis. Além da fotografia assinada por Bruno Gularte Barreto, Bruno Polidoro e Tiago Coelho cheia da subjetividade já citada, o filme tem sua imersão garantida também através do outro pilar fundamental da sétima arte: o áudio. O trabalho de Som feito em parceria com um estúdio alemão e assinado por Emil Klotzh, proporciona ao filme um dos melhores trabalhos de áudio do cinema brasileiro contemporâneo. Não à toa, ganhou o prêmio de Melhor Som no Cine Ceará.

À medida que o filme nos perpassa, sentimos, e uso tranquilamente a primeira pessoa do plural, um desejo de proximidade e abraço com o menino pilar do Bruno, seu eu pequeno, o Bruninho. E como tudo que é muito íntimo, revela-se o universal. No caso, releva-se a onda de autoritarismo repressor e psicopático, como diria Maria Rita Kehl, que grita sua face no Brasil. No cenário de uma cidade no interior do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil, “5 Casas” consegue, através do retrato das figuras mais marcantes da cidade, mostrar um retrato da parte amarga e impune das raízes do Brasil. Felizmente sabemos da existência de partes melhores, outras.


Filme: 5 Casas

Elenco: Beatriz Paiva, Irmã Ana Abatti, Irmã Amélia Lain, Ivone Lemen, Fermina Pedroza, Maria Miranda, Maria Sinhorinha, Ricardo Nascimento e Rodier Mendes

Direção: Bruno Gularte Barreto

Roteiro: Bruno Gularte Barreto, Vicente Moreno

Produção: Brasil

Ano: 2020

Gênero: Documentário, Drama

Sinopse: Em uma cidadezinha no extremo sul do Brasil há 5 CASAS e 5 histórias que se confundem em uma mesma. Uma velha professora lutando para manter sua casa e seus 36 gatos, um jovem que sofre agressões por ser gay, uma freira sendo transferida da escola que regeu com punho de ferro por décadas, um velho capataz numa fazenda mal assombrada e um menino cujos pais morreram quando ainda era criança e que é hoje o diretor que volta para buscar as suas memórias de infância e reencontrar essas pessoas.

Classificação: 16

Distribuidor: Lança Filmes

Streaming: Não disponível

Nota: 10

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