A MULHER QUE FUGIU

A MULHER QUE FUGIU

Há uma grande discussão atual sobre lugar de fala e sobre a falta de capacidade de diretores homens de enxergar o universo feminino. Com isso posto é possível verificar ideias antagônicas nos filmes “Azul é a Cor Mais Quente” (2013) e “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019). O primeiro é dirigido por um homem e o segundo por uma mulher. Em “Azul é a Cor Mais Quente” o relacionamento amoroso entre as personagens Emma (Léa Seydoux) e Adèle (Adèle Exarchopoulos) é idealizado, pelo diretor Abdellatif Kechice, através de uma perspectiva sexualmente expositiva. Já em “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, a diretora Céline Sciamma desenvolve laços reais, constrói sentimentos e prega o amor como o princípio básico do filme. Kechice faz um filme para homem ver. Sciamma não abre mão da sua sensibilidade e faz arte com seu cinema.

Embora seja claro que são as diretoras que possuem a clareza quanto a sensibilidade dos filmes protagonizados por mulheres, surpreende como o diretor sul-coreano Hong Sang-soo imprime essa mesma sensibilidade ao desenvolver a personagem Gam-hee (Kim Min-hee) no filme “A Mulher que Fugiu” (2020). Sang-soo se compromete a explorar a comunicação da mulher com outras mulheres e constrói, aqui, a figura do homem sempre como algo perigoso. Isto é algo que já fica claro na primeira cena em um galinheiro, quando a sua câmera joga o olhar sobre o Galo e suas galinhas.

A trama segue Gam-hee, uma mulher casada, que aproveitando a ausência do marido em viagem, tirou alguns dias para visitar velhas amigas. A acompanhamos, então, nessa jornada de autoconhecimento, na qual tenta se reconectar com quem ela é de verdade. Mas quando começamos a nos perguntar o motivo de algo tão corriqueiro ser tratado no filme como um episódio importante, essas visitas as amigas, é então revelado que essa possibilidade só existiu pelo fato do marido de Gam-hee estar em uma viagem, ou seja, fisicamente separados, algo que não acontecia há 5 anos. E antes que fosse confrontada pela amiga, que aqui faz um pouco do nosso papel ao tentar matar nossas curiosidades, Gam-hee, de maneira muito natural, mas demonstrando, pouco a pouco, uma falta de certeza sobre o que fala, se anula ao dizer que isso é o que o marido quer e,ao dizer que são extremamente compatíveis, ela e o marido, não dá espaço para qualquer sobreposição de opiniões vindas de alguém de fora.

Para essa forma de lidar da personagem quanto a submissão e ao detrimento das suas vontades para a anuência de tudo o que o marido determina, Sang-soo deixa claro a violência psicológica que existe naquela relação. Enquanto a câmera se movimenta de maneira muito suave escolhendo qual personagem mostrar, em uma transição para uma nova cena vemos o Galo bicando o pescoço das galinhas, e estas, por sua vez, já possuem seus pescoços desnudos, tal qual a personagem principal.

A partir daí toda e qualquer figura masculina, quando apresentada na trama fará um papel de agente dominador, pelo menos, em suas pretensões iniciais. Claro que isso é feito através de diferentes propostas, até porque serão inseridos em contextos diversos, mas todos “exigirão” o respeito às suas vontades e tentarão exercer o poder “inerente” ao sexo masculino, mas é lindo em ver com Sang-soo contorna todo esse peito estufado desses seres bufantes, em uma firmeza de cada uma das personagens femininas. Essa determinação vai partir sempre das amigas de Gam-hee. O que vai, claramente, iniciar um processo de amadurecimento da própria protagonista.

Sang-soo nessa sua composição escolhe quase sempre colocar os homens de costas para a câmera, de modo que percebamos que não há diferença entre eles naquele universo proposto pelo diretor. Que a má conduta é compartilhada por todos e todos poderiam assumir qualquer face, inclusive a do marido de Gam-hee.

Se na visita às duas amigas, até então, ela apenas acompanhou os confrontos com os personagens masculinos como observadora, o diretor deixa para o final a batalha em que ela mesma deverá travar. O seu confronto final acontece com um ex-namorado, alguém que ficou e pertence ao passado. Mas que de alguma forma, ela, Gam-hee, precisava enfrentar agora. Mas antes, Sang-soo, de forma bem irônica, revela que o último encontro da protagonista é justamente com uma antiga amiga, Woo-jin (Kim Sae-byuk), que é a atual esposa desse ex-namorado. Muito embora Woo-jin, com esse reencontro, demonstre um desconforto por causa de uma possível culpa, Gam-hee prontamente deixa claro que não há qualquer tipo de mágoa entre elas. O diretor vai ainda mais além para compor esta personagem e, com sua câmera, através de um roteiro muito bem elaborado, capta Woo-jin,a única das amigas que é casada com um homem, como uma mulher infeliz e frustrada e sua apresentação se faz atrás de grades, nos levando a uma ideia de mulher condenada a infelicidade ao viver com alguém que não a faz bem.

O amadurecimento de Gam-hee, porém, é visível e a forma como ela, então, lida com seu passado nos direciona para uma ideia de futuro diferente. Como sua amiga Woo-jin ao se referir ao marido indaga: “Se ele apenas se repete, como isso pode ser sincero?”, Gam-hee padecia do mesmo mal ao sempre repetir sobre a compatibilidade entre ela e seu marido e sobre a intensidade da paixão dos dois. Mas dentro de uma sala de cinema, assistindo ao movimento libertador das ondas do mar, temos a certeza de que, enfim, ela se libertou.


Filme: Domangchin Yeoja (A Mulher que Fugiu)
Elenco: Kim Min-hee, Seo Young-hwa, Song Seon-mi, Kim Sae-byuk, Lee Eun-mi, Kwon Hae-hyo
Direção: Hong Sang-soo
Roteiro: Hong Sang-soo
Produção: Coréia do Sul
Ano: 2020
Gênero: Drama
Sinopse: Enquanto seu marido viaja a trabalho, Gam-hee visita suas amigas nas imediações de Seoul. Elas conversam amigavelmente, mas cada uma delas têm uma expectativa diferente em relação à vida.
Classificação: 10 anos
Distribuidor: Pandora Filmes
Streaming: Não disponível
Nota: 8,3

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