Uma das maiores figuras das Artes, sobretudo cênicas, da História do Brasil, sem dúvidas é o Grande Otelo. Quanto mais se pesquisa, quanto mais se busca, mais ouro, “petróleo”, enfim, talento, se encontra. No filme “Não Vim no Mundo Para Ser Pedra”, a sua busca se transforma em um desejo nosso de que elas encontrem o que procura e seja tão realizada quanto podemos ser agora. Mas nada é tão simples…
Ouvindo o Grande Otelo, inclusive na entrevista concedida ao Roda Viva e que é tão bem utilizada no filme em questão, se capta uma espécie de sonho a realizar-se. Uma divida? Sonhos que forças hegemônicas, políticas, econômicas, não permitiram que fossem realizados. Não permitiram, antes, sequer que fossem sonhados. Mas existem. Por exemplo, que companhia foi, e pode voltar a ser, essa que teve entre seus membros figuras como Pixinguinha e o próprio Grande Otelo? Por que eu sei tão pouco sobre isso? Porque sua permanência não foi viável? E o mais importante: por que sua existência não garantiu uma vida plena? Junto com a voz de Otelo, a voz da esquecida História. Essa persistentemente esquecida, colorida. Afinal, o que é ser brasileiro? O que há de mau-caráter nisso? E Macunaíma não diz que “Não há caráter nos heróis. Os heróis são mais ou menos descaracterizados” (…) O brasileiro é um povo que tem muito caráter, te há certeza disso. Apenas cercado de um lado, de outro, ali, cercado até por cima, ele tem que dar um jeitinho né?”, entoa Otelo. Quer dizer, é uma visão sem heroísmo ou vitimização. É a visão do desejo e da experiência de/para enxergar com sinceridade e cautela outras formas de contar e fazer histórias. No momento atual, disputamos representações e esquecemos um tanto das ambiguidades das/nas narrativas. Grande Otelo, assim como esse filme instigante é bem elaborado, pode ser um guia. E é!
Não podemos aceitar o discurso também hegemônico e um tanto eugenista que diz que o fracasso do povo brasileiro é quase inevitável, certeiro. Principalmente porque o germe desse discurso é a ideia de que o fracasso bem devido à impureza racial e ética. Por isso tal impureza, segundo seus crentes, existe dentro de certo grupos, castas, e devido a certos ideias. É uma teoria descaradamente eugenista também porque a desvalorização de forma determinista sempre serve de suporte pra alguma comparação, para um ponto de vista eurocêntrico e ocidental do que é uma sociedade civilizada. Ou seja, como deveríamos ser segundo dos dogmas coloniais. Que, aliás, são profundamente equivocados no que apontam ao outro como diferente de si. A ideia de selvagens, por exemplo. Ora, quem era selvagem? Quem colonizou povos e cometeu genocídios e epistemicídios usando como ferramenta uma inventada razão baseada numa bula papal, a Dum Diversas de 1452? Quer dizer, sequestram, matam, escravizam e não sai selvagem, bárbaros? Considero contraditório.
E percebam que nossa História mais ou menos recente nos indicia alguns caminhos que apontam para a soberania dos interesses daquele que foram, quase sempre, sufocados, ou, como diz Otelo, cercado. E mesmos assim, mesmo resolvendo todas as demandas e equacionando, resolvendo as questões, não conseguimos ser tolerados. E isso se deve a um ponto muito bem abordado pelo filme e pelo Grande Otelo: “O brasileiro, quando bota um smoking, se torna outra pessoa. Aí é que ele fica branco. Porque o brasileiro, no fundo, é preto”. E perceber, aceitar e superar isso, é como ver a selvageria em si. A selvageria da branquitude em dose dupla: a de verdade e a da mentira. É enxergar a selvageria que realmente existe criada em razão da invenção de uma selvageria inexistente nos povos violentamente escravizados e assassinados durante o processo de colonização. É precisar de aceitar como o dito selvagem para depois entender racionalmente que a selvageria não existe. Porque sim, é necessário entender também racionalmente. A razão está no germe dessa invenção e ela precisa ser utilizada para desfazer-se. Ou não?
De toda forma, o filme “Não Vim no Mundo Para Ser Pedra” apresenta tudo isso e mundos mais através do uso de uma linguagem amplamente dinâmica e interessante. Uso que é fundamental hoje, feliz ou infelizmente. Precisamos repensar as linguagens, expandi-las, se o desejo é deixar de destiná-las a poucos e poucas. O filme cria um fluido diálogo também usando trechos de entrevistas, porém sem se satisfazer com o que há de estático nesse formato. Há pontes, movimentos, retratos outros, simbólicos riachos.
E, é nítido, há um longo caminho antes, durante e depois do trabalho que, geralmente, não pode ser feito somente por quem o idealiza ou praticamente o realiza. Existem forças e trabalhos com fortes princípios mercadológicos que por vezes expandem, por vezes contraem o universo de possibilidades de certos grupos e discursos e trabalhos. O Grande Otelo é fundamental também para pensar isso. E “Não Vim no Mundo Para Ser Pedra” é extremamente coerente com muitas questões, incluindo essa.
“Para quem sabe ver e decifrar, sinestesia suas máscaras de talento e sabedoria”, disse Milton Gonçalves sobre Grande Otelo em 1987
Filme: Não Vim No Mundo Para Ser Pedra Elenco: Grande Otelo, Zózimo Bulbul, Milton Gonçalves, d. Ruth de Souza e d. Diva Guimarães Direção: Fábio Rodrigues Filho Roteiro: Fabio Rodrigues Filho Produção: Brasil Ano: 2022 Gênero: Documentário, drama Sinopse: Através de recortes, Otelo repropõe a ordem dos fatores, altera os resultados mesmo daquilo que parece mais consumado… genialidade que encarna dilemas imanentes, dilemas que estamos a enfrentar. Monumento porque em constante movimento, escapa, transborda, samba. Um samba sobre o infinito. Classificação: Livre Distribuidor: N/A Streaming: Ainda indisponível Nota: 8,8 |