Algumas pessoas mais próximas ou, por alguma razão, interessadas em acompanhar festivais de cinema, muito possivelmente já assistiram “Branco Sai, Preto Fica”. Sua plúmula de resgate e expansão, vanguarda e familiaridade, encontra eco no mais recente filme lançado pelo mesmo diretor, Adirley Queirós, que nos apresenta uma parceria na direção com Joana Pimenta no filme “Mato Seco em Chamas”.
Podemos começar este texto tentando – e falhando, esboçar um desenho/retrato que parte do próprio título. Ao redor de um mato seco em chamas, que mundo existe? Uma área rural, com casas, simplicidade, a ânsia bela por sobrevivência com gana, sem ganância. O tempo que opera respeitosamente às vidas que por ali passam. Será? Não raro, no interior, o tempo nos ensina que o que passam são as vidas. Lá, terrenos, lotes e pistas ainda não totalmente asfaltados e entre eles, alguma desigualdade paira no ar. A mesma que talvez forneça matéria para a necessidade de atear fogo no mato seco para espantar mosquitos, limpar e preparar o solo para novos plantios. Isso, ou então declarar guerra a alguma força inimiga. Há também o fogo causado pela seca, pela escassez de condições básicas para a vida. Inerente ao fogo, há a necessidade de aceirar, isto é, delimitar uma área de forma que se crie/estabeleça um pequeno abismo a fim de limitar o que será consumido por este fogo. Alguma hora ele sucumbirá. Ao menos, é o que se espera.
Essa ambientação é perceptível nalguma parcela do filme, como fosse uma semente e, concomitantemente, uma raiz. Algo promete guardar essa essência e também dar suporte a algo além, algum futuro. Essa delicada justaposição já sinaliza algum adiantamento que alinha diferentes momentos, tempos e olhares, unindo utópico e distópico num só tempo, cena ou plano. Essa ambiguidade estabelece algumas rupturas ao atravessar gêneros cinematográficos, referências literárias, convenções sonoras, fotográficas e, sobretudo, naquilo que mais importa: o olhar sobre um mundo e suas vidas, seus seres.
“Mato Seco em Chamas” começa retratando ou criando uma realidade na qual os homens estão presos ou mortos, inclusive, simbolicamente. No próprio filme, o poder é das mulheres, o incluindo o maior tempo de tela e número de falas. Mas com os pés fincados nos milênios que nos fundam, em esmagadora maioria, essas mulheres são bélicas. Apresentam movimentos, falas, ideias e posturas cujos referências são, dicotomicamente falando, masculinas. Mas, e daí? Seria somente uma ferramenta pra obtenção de respeito dentro do universo ocidental? Ou seria também uma forma de familiarizar e surpreender o público? Porque a presença do masculino no mesmo corpo/ser no qual habita o feminino, para muitos pode não ser grande surpresa. Afinal, a frase “Was will das weib”, de Freud, pode escapar do ordinário e ser entendida como “O que quer o feminino na mulher?”. A pergunta reafirma o que para seu autor já não era novidade: a presença do masculino e feminino em todos os seres, mesmo que alguma ênfase seja notada ou cobrada sobre determinados corpos. Esse jogo em cena se retroalimenta da estrutura binária e misógina para, quiçá, miná-la. A forma como o filme apresenta uma aparente representação sem perdas ou forçação é significativa, também em matéria de preparação de elenco. E que extraordinário elenco…
O mesmo drible acontece no que diz respeito a outra divisão que, embora não seja fundadora do Ocidente, como a misoginia, também é fundamental para a manutenção dos pilares ocidentais: a esquizo, cissão, racial e territorial. “Mato Seco em Chamas” nos mergulha, basicamente, numa narrativa sobre o ouro preto da/na favela. A preciosidade e relevância do petróleo ora se confunde com a grandiosidade das mulheres pretas, suas famílias e inúmeros, frutíferos, amores. Outrora se confunde com a dependência do Brasil em relação ao ouro preto extraído das mulheres pretas que estruturam e suportam o país. Repito: como semente e raiz, essência e suporte. Não como matéria essencial a ser explorada e vendida, mas como força capaz de se reconhecer responsável por mudanças necessárias e determinantes. Com esses e tantos outros sentidos, e não para definir ou limitar, é possível adjetivar “Mato Seco em Chamas” como um filme antropofágico, pois se utiliza de um espaço e linguagem comum ao opressor para refazer os símbolos e, através deles, questionar as opressões. E assim, refaz a grandiosidade da cultura, da linguagem.
A linguagem cinematográfica, embora não somente ela, é urgentemente renovada com esse rio em chamas. Os componentes técnicos esbanjam coerência com sua narrativa, da mesma forma que a narrativa é alimentada pela destreza técnica. A exemplo disso, o petróleo. Um líquido viscoso, preto, brilhante, valioso. Inflamável em todas as fases/derivados nos quais se desdobra. E o faz sem perder sua essência altamente subterrânea, enraizada, ancestral e contagiosa.
Tudo isso está no roteiro assinado por Joana e Adirley, na fotografia de Joana e na montagem da poetisa Cristina Amaral. Podemos começar pelo preto em contraste com o amarelo do fogo, que vemos nas cenas graças também à notável direção de arte de Denise Vieira. Do fogo, percebe-se algum suspense e maturação. O filme contém estalos, o som roda a sala de cinema. Costumo pensar e dizer que som é imersão. Mas o trabalho de Daniel Turini e Fernando Henna fez com que o filme nos apresentasse um som que se alastra. O líquido preto que dá base a inúmeros derivados sem perder sua essência, forma um rio extenso a atravessar variados terrenos. A montagem impõe ou respeita ao/no filme o tempo das trajetórias, dos fluxos, da vida. Como os rios, nós também nascemos em algum ponto/local. Ao caminhar nos mudamos, buscamos algo mais. Andamos e giramos o mundo, ou nossa humilde terra.
As prioridades parecem mudar, os assuntos e semanas surgem ao próprio tempo. Percorremos-os sem que saia da gente o nascimento e seu ponto – algo da origem que reside em todo lugar. Em “Mato Seco em Chamas”, o que nitidamente se percebe é que um rio, naturalmente, não se perde. Quero dizer, uma questão que se apresenta no início encontra deságue/continuidade no meio, e se contempla no fim. Ao mesmo tempo, a fotografia, com seus planos, e o som, com seus mergulhos, nos fornece visitas íntimas a um lar. Nele, precisamos respeitar o escalar do tempo, que nos presenteia com informações a depender da confiança que conquistamos. Tudo num tempo humano. A paisagem muda vagarosamente, a ponto de não percebemos. Em dado momento, acompanhamos parte de uma família, de um bairro, depois o retrato de uma época, e por fim, de um país. Tal retrato não tem início, meio e fim. Ele se compõe em ciclos.
A realidade se impõe na vida, e por aqui, pouco valem as dicotomias que, com muito custo, são defendidas, sustentadas, pela classe média e pela burguesia que mantêm as fantasias ocidentais: bem e mal, homem e mulher, crime e justiça, eles e nós, passado, presente e futuro, semente, raiz, tronco e frutos. “Mato Seco em Chamas” balança essas setas. Uma mulher preta que descobre petróleo e manipula esse ouro preto com as mãos e apoios de outras mulheres. Uma delas se envolve na política. Outra, com seu exército de trabalhadores, derrota o neofascismo e, em dado momento, reafirma o amor à sua história, ancestralidade e família. A mesma resume: “taco fogo nisso tudo aqui, mas não entrego pra nenhum filho da puta!”. As mulheres pretas extraindo de si mesmas, ou sendo, a força motriz da nação que encontramos nas favelas e comunidades. Lá surgem as maiores lendas (não mitos) do país. “Mato Seco em Chamas” reitera e compartilha essas lendas. A partir delas é que vencemos. O rio dos sonhos não tem fim.
Filme: Mato Seco em Chamas Elenco:Joana Darc, Léa Alves, Andreia Vieira, Débora Alencar, Gleide Firmino Direção: Joana Pimenta e Adirley Queirós Roteiro: Joana Pimenta e Adirley Queirós Produção: Brasil, Portugal Ano: 2022 Gênero: Drama Sinopse: Na favela de Sol Nascente, na Ceilândia (DF), a principal moeda de troca entre grupos inimigos é o petróleo. Chitara, grande gasolineira da região, tenta fidelizar a clientela junto ao seu poço particular, com a ajuda da irmã. Quando o Brasil se torna mais conservador e ameaça votar na extrema-direita, o posicionamento de Chitara se transforma num ato político. Classificação: 14 anos Streaming: Ainda indisponível Nota: 10 |