Em uma vila remota, afastada no espaço e no tempo do mundo e habitada por uma colônia religiosa, um grupo de mulheres de várias idades se reúne em um celeiro para discutir algo muito importante: seu destino. Após sofrerem anos com todo tipo de abuso, essas mulheres precisam decidir se irão se manter na realidade que lhes fora imposta muito tempo atrás, ou se negarão toda a sua existência e partir do único lugar que sempre conheceram como seu “lar”. Assim se desenha a narrativa de Entre Mulheres (Women Talking, 2022), escrito e dirigido por Sarah Polley.
Logo de início percebemos que o filme de Polley possui uma estética simples. Ambientado em praticamente só um cenário – o celeiro – pouco vemos do restante da vila e de seus outros habitantes. A narração em voice over fica a cargo de uma personagem do futuro, que ainda não existe no espaço e tempo em que a história principal está acontecendo. Essa narração onipresente não expõe os fatos que acontecem em tela, ela explica o porquê de certas coisas terem acontecido e a maneira pela qual elas aconteceram. A atmosfera é sombria e ainda que o clima seja árido e ensolarado, os tons frios permeiam a tela em todos os cenários.
A grandiosidade de Entre Mulheres está, principalmente, em seu elenco, cercado de atrizes amplamente conhecidas na indústria cinematográfica, como Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley e Frances McDormand. Esses nomes abrilhantam o filme de Sarah Polley, e mesmo as atrizes menos conhecidas fazem seu trabalho de maneira competente, com a mesma intensidade e talento. É bastante gratificante assistir às suas performances, tão distintas entre si e tão poderosas. O embate entre personalidades e mentes que se dá entre, principalmente, as personagens de Mara, Foy e Buckley é, em parte emocionante e em parte revoltante. Essas mulheres que falam, também ouvem, e ainda que haja divergências, esse lugar de escuta não se desfaz. Todas ali tem sua voz.
Entre todas essas personagens, fortes à sua maneira, há um único homem. O personagem de Ben Wishaw está ali para auxiliá-las no que for preciso. É bastante importante o fato de que seu personagem fora expulso da colônia porque almejava estudar, além de ter uma mãe rebelde. Em uma cultura de ignorância e violência, aquele que pensa minimamente diferente deve ser excluído. Este personagem está melhor entre as mulheres, e usa de seu conhecimento da melhor forma que acha possível.
O assunto principal de Entre Mulheres é a violência, principalmente sexual, contra essas personagens apresentadas. Essa violência está ali o tempo todo, seja nos discursos ou nas marcas que podemos ver em seus corpos, porém, nós não vemos os violentadores em ação. Essa escolha de não nos mostrar os rostos dos homens da colônia funciona muito bem e o fato de todos eles usarem a mesma vestimenta – incluindo o personagem de Wishaw – funciona como uma afirmação de que um abusador não tem somente um rosto, ele pode estar em todos e em qualquer um.
O filme de Sarah Polley, baseado no livro de Miriam Toews, apesar de estar inserido no gênero ficção é tão real quanto o dia a dia a que estamos acostumadas a viver e é bastante impactante descobrir, ainda na primeira metade do filme, que o ano em que se passa essa história é 2010. A ambientação é semelhante à de um western. Algo realmente comum em produções que abordam o tema de seitas ou colônias religiosas. Esse pequeno mundo, que se esqueceu de “evoluir”, priva as mulheres da educação e do pensamento, o que consiste basicamente em privá-las de tudo.
É importante sinalizar que, ainda que essa narrativa se passe em uma comunidade religiosa e o tema da fé esteja em evidência, ela não é usada como motivação para os atos dos homens contra as mulheres. É acertadíssima a escolha de apresentar os fatos como eles realmente são. Não há justificativa para esses personagens genéricos terem feito o que fizeram por anos e anos. Não é em nome da fé ou de qualquer outra coisa, sagrada ou não, que eles cometem tais atos. É somente uma questão de poder, que se baseia no fato de se ter nascido homem.
Em uma votação democrática, estas mulheres precisam se decidir entre as opções de ficar e lutar ou ir embora. A discussão, que se torna acalorada por muitas vezes, é cheia de relatos, entre histórias sobre cavalos ou mesmo sobre o que guarda o futuro para as meninas mais jovens. É curioso e instigante assistir à essas mulheres conversando, e entre tantas palavras há, também, a música. Hinos religiosos são sua forma de lidar com as dores da existência.
É impressionante assistir às mulheres mais velhas falando sobre suas experiências dolorosas e caindo na gargalhada logo em seguida, tais cenas representam a bravura dessas personagens em meio à situação. Em uma dessas cenas, uma das garotas mais jovens comenta algo sobre elas rirem com toda a força como se quisessem chorar. O trabalho no texto de Entre Mulheres é sutil e ainda assim de um poder imenso.
Uma das personagens mais instigantes do filme é aquela interpretada por Jessie Buckley. Mariche é uma mulher casada que sofre pelas mãos de seu marido. Ainda assim, ela vive em negação. Enquanto defende os homens, mesmo não conseguindo justificar o porquê disso, ela escuta as outras que tentam a persuadir. Essa personagem, que encarna um papel central ali naquele cenário, é uma das mais amedrontadas pela situação. Sua personalidade intransigente cai em confronto com a personalidade de Ona (Rooney Mara), que é o completo oposto. Calma e pacífica, essa personagem busca um desfecho que seja bom para todas, longe de mais violência e rancor. A personagem de Claire Foy, Salome, quer resolver os problemas da mesma forma que eles foram criados, com violência e brutalidade.
Após uma longa discussão em um curto período de tempo, essas mulheres chegam a uma conclusão. Os minutos finais do filme carregam consigo força, irmandade e respeito. A personagem de Jessie Buckley, que é uma das com maior desenvolvimento dentro da narrativa, entrega um discurso pequeno, porém gigante em seu significado. O desfecho para essas mulheres que tanto falaram é silencioso, mas mesmo este silêncio é poderoso.
Entre Mulheres estreia hoje (02/03) nos cinemas brasileiros.
Filme: Entre Mulheres (Women Talking) Elenco: Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Frances McDormand, Judith Ivey, Sheila McCarthy, Michelle McLeod, Ben Wishaw. Direção: Sarah Polley Roteiro: Sarah Polley Produção: Estados Unidos Ano: 2022 Gênero: Drama Sinopse: Um grupo de mulheres em uma isolada colônia religiosa contam umas com as outras para se reconciliar com sua fé após uma série de abusos sexuais cometidos pelos homens da comunidade. Classificação: 14 anos Distribuidor: Universal Pictures Brasil Streaming: Indisponível Nota: 8,8 |
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